“De onde saiu isso?”: Bolhas e Mundos Informacionais Online

Lesandro Ponciano ORCID iD

29 de janeiro de 2025

Já aconteceu de você se deparar com um vídeo publicado há anos, com milhões de visualizações, e ser algo totalmente desconhecido para você? E você não apenas desconhecia o vídeo, mas também desconhecia o conteúdo nele discutido? Ainda, já aconteceu de você tomar conhecimento de um influenciador que tem milhões de seguidores e você nunca ter ouvido falar dele? Não estou me referindo a conteúdos e pessoas de outros países ou em outros idiomas, mas sim no seu idioma, do seu país, estado ou até mesmo sua cidade. Costumo me ver nessa situação. Também tem sido comum algum aluno me falar de algo que eu nunca tinha ouvido. Ele julgava ser algo de conhecimento comum, embora alguns dos colegas dele também não conhecessem.

Essas situações sobre conteúdos ou pessoas em sistemas online não são raras. Elas dizem muito sobre o novo fluxo de informação, a organização dos sistemas online e a dificuldade de entender alguns fenômenos políticos e culturais atuais. Os sistemas online estão criando diversos segmentos de informação, cada segmento é um mundo informacional. Alguns desses segmentos são geralmente apelidados de bolhas (bubble). Não é que a pessoa vive em um segmento que ela criou, mas sim que foi criado por uma combinação de fatores. Os interesses manifestados pelos conteúdos que a pessoa busca na plataforma, combinados com os algoritmos de recomendação de informação empregados pela plataforma, criam segmentos que até as próprias pessoas desconhecem. Esses segmentos são economicamente pertinentes às plataformas, mas não necessariamente às pessoas. A segmentação informacional coloca a pessoa fechada em um ambiente informacional aparentemente agradável a ela e que, portanto, ela tende a consumir cada vez mais. Isso é rentável para as plataformas em termos de anúncios exibidos junto a essas informações.

Estar diante de algo aparentemente popular em sistemas online, mas desconhecido para nós, não se trata de ser mal informado. Isso está mais relacionado a não ter acompanhado a emergência desse algo. É impossível que todas as pessoas saibam todos os tópicos e personagens que estão emergindo nos sistemas online. Elas não veem todo o sistema, mas apenas os segmentos nos quais estão inseridas. Algumas dessas emergências perdem força, mas outras levam a conteúdo e personagens muito influentes dentro do segmento em que surgiram. Acontece de algum desses conteúdos ou personagens, por questões políticas ou econômicas, ganharem relevância para além do segmento em que emergiu. Isso ocorre, por exemplo, quando uma pessoa se candidata a um cargo público e é eleita ou alcança grande votação em razão de uma parcela específica da sociedade que a conhecia online, enquanto até então ela era desconhecida da maior parte da população.

Somente os mantenedores das plataformas detêm todos os recursos para detectar e compreender os segmentos. Não sabemos quantos segmentos existem, o quão grandes eles são em número de pessoas e se há interseções entre eles. A segmentação do fluxo de informação é pouquíssimo conhecida. As plataformas impõem barreiras de acesso a dados impedindo que esses segmentos sejam estudados. Para compreender os segmentos, não é suficiente olhar o que as pessoas dizem ou com quais conteúdos elas se engajam na plataforma. Também é necessário saber a quais conteúdos elas são expostas pelos algoritmos. No jargão da computação, não é suficiente analisar a precisão (precision), é necessário analisar a revocação (recall) também. Somente as plataformas detêm todas essas informações.

Há algumas décadas, jornais, revistas, canais de TV e rádio centralizavam e distribuíam a informação. Aquilo que fazia sucesso e se tornava muito conhecido era aquilo que passava por esses meios de comunicação. Por um meio ou outro, a informação chegava a uma parte relevante da população. Poderia se questionar se convinha dar visibilidade a uma determinada informação ou pessoa, mas todos sabiam ou poderiam verificar a qual informação e a qual pessoa a visibilidade era dada. Sabia-se com razoável margem de certeza a informação que era veiculada, quando era veiculada e qual percentual da população era atingido.

Hoje em dia, a informação circula de modo diferente nos sistemas online. Não é uma difusão de um para todos (broadcast). A maior parte da informação é publicada pelas próprias pessoas e circula dentro dos segmentos que têm acesso a elas. Isso traz dificuldades. Suponha um contexto em que a TV se torna irrelevante e a única forma de divulgação de informações seja as plataformas de mídias sociais. Nesse contexto, suponha que o governo federal deseja que uma informação chegue a toda a população. Como atingir esse fim? A divulgação orgânica, por publicação na conta do governo na plataforma, enfrentaria grande dificuldade em termos de visibilidade. Para chegar a toda a população, seria necessário alcançar todos os segmentos. Somente a plataforma é capaz de levar uma informação a todos os segmentos.

Essa é uma das dificuldades que os governos, incluindo o governo federal do Brasil, enfrentam ao desmentir notícias falsas. Para fazer esse enfrentamento de modo satisfatório, seria necessário levar a informação verdadeira a todos os segmentos em que a informação falsa se disseminou. Somente a plataforma tem todos os dados e meios necessários para fazer com êxito essa disseminação nos segmentos. É muito difícil para o poder público alcançar isso apenas com os recursos convencionais de publicação e engajamento que as plataformas oferecem.

Outra implicação delicada desse contexto é a dificuldade que temos de compreender a sociedade atual. Por exemplo, quais são os fatores que levam à emergência de grupos extremistas e supremacistas, como os que têm sido observados no mundo? Muitas vezes nos perguntamos “de onde veio isso?”, “como isso ganhou esse tamanho e ninguém viu?” ou “em que mundo esse povo viveu?”. Parte da resposta a essas perguntas está no fato de que as pessoas não vivem mais no mesmo contexto informacional. Mesmo que essas pessoas usem os mesmos sistemas e morem na mesma cidade que nós, as plataformas fazem com que elas estejam em mundos (segmentos informacionais) diferentes dos nossos. Ela não escolheu o segmento no qual está. Ela foi colocada onde consome mais informação. Se essa pessoa vive intensamente nesse mundo informacional, o repertório que ela constrói e, portanto, os sentidos que ela percebe para as coisas são influenciados por esse mundo.

Quando observamos a inédita centralidade dada aos donos das BigTechs no novo governo dos Estados Unidos, não podemos ter dúvidas de que as BigTechs têm poder além do razoável. Também é inegável que esse poder pode ser colocado a serviço de uma perspectiva política. Há várias implicações disso. Por exemplo, esse contexto que vivemos em 2025 fortalece muito o argumento de que há uso político e geopolítico da tecnologia buscando intervenções em outros países. Há especulações históricas sobre isso. No mundo, isso ressoa a "Primavera Árabe" em países do Oriente Médio e do Norte da África entre 2010 e 2013. No Brasil, não há como esquecer as "Jornadas de Junho de 2013" e o papel que as redes sociais tiveram. Talvez estejamos vivendo hoje o ponto mais sofisticado dessa engenharia social, política e econômica comandada por BigTechs para servir a interesses de governos.

Como a sociedade pode lidar com todos esses desafios? Uma das ações é buscar a diversidade de fontes de informação. É positivo existirem várias plataformas, controladas por diferentes organizações e estabelecidas em países diferentes. É adequado que cada pessoa esteja em diferentes plataformas, para não se limitar às idiossincrasias de uma ou de outra. Quanto mais diversas forem as pessoas que se seguem e o tipo de conteúdo recebido, melhor. É importante fugir do viés de se expor a apenas algumas perspectivas. Essas diversificações tendem a ocorrer na prática? A resposta está mais inclinada para um “não” do que para um “sim”. Há mais evidências de que as pessoas migram de uma plataforma para outra do que que elas usam várias plataformas simultaneamente. As pessoas também não tendem a buscar diversidade de informação; elas constroem uma relação por homofilia (homophily), que é a tendência de criar conexões com semelhantes. A homofilia reduz a diversidade de visões às quais as pessoas são expostas. Então é difícil fugir das bolhas. Seria necessário um nível de disciplina e esforço que excede ao que as pessoas estão dispostas a dedicar em sistemas online.

Esse é o cenário desafiador em que nos encontramos. Até que tenhamos uma solução, volta e meia vamos continuar tendo a estranheza de nos deparar com algo popular e comum para outros enquanto é totalmente desconhecido por nós. Na política, há o risco de vermos emergir figuras "atípicas", que não conhecemos, mas que surgem com uma força que não sabemos de onde vem. Uma conversa simples entre pessoas que vivem geograficamente próximas pode continuar sendo um desafio por não viverem em um mundo informacional comum. Continuaremos nos surpreendendo: “de onde saiu isso?”.

(Note que esse debate é peculiar de plataformas corporativas e fortemente centralizadas. As bolhas ou segmentos não são pré-definidos por meio de tópicos ou servidores. Esse tipo de bolhas ou segmentos são invisíveis para as pessoas, não nomeados, e surgem a partir de comportamento e algoritmos pouco transparentes. Nesse sentido, esses segmentos e bolhas em nada se assemelham às instâncias em plataformas como Mastodon ou subcomunidades como subreddits do Reddit ou servidores do Discord. As plataformas corporativas e centralizadas criam a falsa impressão de que todos estão no mesmo sistema e tendo acesso às mesmas informações, quando isso não é verdade em relação à informação.)

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