Atualmente ser usuário do Twitter e ter o bem comum como um valor é viver uma grande contradição
04 de fevereiro de 2023
Antes de tudo, por que nos preocupar com o que o Twitter faz ou deixa de fazer? O Twitter é uma plataforma relevante pela inserção que ele tem na sociedade. Isso é sabido desde os primeiros anos da plataforma. O livro “Twitter and Society” [1], da editora Peter Lang Publishing, já analisava em 2013 o poder da rede social (ou rede de pessoas) construída na plataforma. Seu potencial só aumentou desde então. Está amplamente demonstrado que as informações que circulam no Twitter afetam decisões financeiras e políticas de grande impacto. Essa plataforma está mudando muito. O fato mais recente é que o Twitter anunciou em 02 de fevereiro de 2023 que deixará de oferecer acesso livre à sua Interface de Programação de Aplicações (API) [2]. Tal API passa a ser substituída por uma alternativa paga (impondo um paywall). Essa mudança se soma às diversas outras pouco palatáveis que foram implantadas pela plataforma desde que foi adquirida em uma transação bilionária em outubro de 2022 [3]. Para entender melhor isso, é necessária uma perspectiva histórica.
Eu comecei a usar o Twitter em 2008, apenas 2 anos depois da plataforma ser lançada nos Estados Unidos. Tomei conhecimento dela por meio de um amigo e colega de laboratório, quando eu estava no início do meu mestrado. Havia uma efervescência criativa naquele momento histórico, estavam surgindo vários sistemas Web interessantes. São chamados academicamente de sistemas colaborativos, peer production systems e user-generated content systems. Havia naquele momento histórico uma busca por interconectar as pessoas. Os sistemas buscavam atrair multidões. Eram simples e inovadores. Versões pagas ou paywall em funcionalidades eram praticamente inexistentes, pois a essência era maximizar a adoção do sistema. A ideia chave era criar uma grande comunidade online. O livro “Building Successful online Communities: Evidence-based Social Design” [4] da editora MIT Press descreve um pouco dessa visão da época. Também analisamos isso no texto “Perspectivas em Computação Social” [5], publicado na revista Computação Brasil em 2018.
Ao longo dos anos, eu me beneficiei muito do Twitter. Conheci e interagi com diversas pessoas interessantes nessa rede social. Descobri muitos trabalhos acadêmicos que influenciaram minha prática científica, principalmente durante o meu doutoramento. Tomei conhecimento de muitos acontecimentos atuais por meio de publicações de usuários nessa rede. Por atuar na área de sistemas colaborativos, eu também estudei a rede social formada pelos usuários do Twitter em alguns trabalhos científicos e projetos acadêmicos, que foram conduzidos por mim e por estudantes de graduação orientados por mim. Fui usuário assíduo e observador de comportamentos na rede por uma década e meia. Assim, mantive grande interesse tanto pessoal como científico sobre o que a plataforma foi se tornando.
Desde sua criação, a plataforma evoluiu suas funcionalidades. Há vários exemplos. O re-tweet, que é um artifício criado pelos usuários ao duplicar mensagens adicionando “RT” no início, foi transformado em uma funcionalidade, um botão na interface. A estrelinha amarela usada originalmente para indicar um “favorito” ou “gostei” (like) virou um coraçãozinho vermelho. O limite de caracteres por tweet que originalmente era de 140 subiu para 280. Surgiram as contas verificadas. Tweets começaram a ser agregados em threads, formando os fios com longos debates. A dinâmica do trending topics mudou de uma perspectiva de tópicos emergentes no mundo para algo muito mais específico de uma região ou de interesse de uma pessoa. A plataforma foi mudando e o comportamento na rede também. A rede passou a atrair cada vez mais comportamentos extremistas e tóxicos. Mas tudo isso estava no espectro de possibilidades e era algo a se lidar como usuário da plataforma.
Nos últimos 5 anos, questionamentos sobre os caminhos que a plataforma estava tomando começaram a se tornar frequentes e ainda mais sérios. São várias as notícias desconfortáveis sobre a pouquíssima transparência das políticas e algoritmos empregados na plataforma. Isso ocorreu no caso do banimento de contas por iniciativa da plataforma, funcionamento de algoritmo de recortes de fotos que apresentava comportamento racista [6] e mudanças drásticas nas funcionalidades de interação [7]. A compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk [3] colocou em prática uma nova gestão (e visão) que desde início se mostrou bastante hostil. Hostil com funcionários da empresa Twitter que foram desligados de modo abrupto [8]. Hostil com a história da plataforma ao questionar a sua filosofia de interação com a comunidade. Hostil aos usuários que formam a rede social e que passaram a ser tratados quase como “aproveitadores” que estavam usando a plataforma sem pagar nada. Tudo isso caracteriza um choque de gestão e de visão pelo qual a plataforma busca tornar a rede rentável mesmo que para isso parte relevante de seus membros (que não é pagante ou não é monetizável) seja banida ou marginalizada.
E a API que motiva essa discussão? O Twitter implementa uma API que permite realizar operações via software, como publicar um tweet, seguir um usuário, ou fazer busca por tweets sobre um determinado assunto. A API é importante para quem constrói aplicações ou faz análise de dados na plataforma. O acesso à API era restrito. Para ter acesso, era necessário fazer uma solicitação à plataforma, apresentando a justificativa e podendo ter a solicitação aprovada ou reprovada. Há mais de 5 anos, eu solicitei esse acesso e recebi as credenciais para uso da API de forma acadêmica, para estudar comportamentos na rede. A API possui limites de uso, como número de requisições por dia, mas tal limite é pouco restritivo para análises de comportamento. Além do amplo uso acadêmico, o acesso aberto à API permitia o desenvolvimento de diversos robôs sociais criativos, que divulgavam informações de interesse público. Alguns desses robôs são analisados no artigo “Análise da Popularidade, Visibilidade e Atividade de Diferentes Robôs na Rede Social Twitter” [9] publicado em 2017 no Simpósio Brasileiro de Sistemas Colaborativos. Para uso comercial, existe o acesso pago à API que amplia a possibilidade de uso ao flexibilizar os limites.
Ao anunciar que passará a cobrar financeiramente pelo acesso à API [2], a plataforma se torna também hostil à filosofia de conhecimento aberto e dados abertos. As pessoas produzem e publicam conteúdo gratuitamente na rede social (e algumas delas pagam para fazer isso), mas agora a plataforma decide que quem deseja acessar tais conteúdos via API terá que pagar. Ao colocar tal paywall, a plataforma elitiza o acesso aos dados que foram publicados aberta e gratuitamente pelos usuários da rede social. Ela também reduz a transparência, pois poucos pagantes poderão investigar e questionar o que se diz sobre como se dá o comportamento das pessoas e a emergência de tópicos na rede. Essa decisão também inibe a atividade e criatividade de milhares de programadores [10] que construíam aplicações dependendo do uso da API. A plataforma se torna menos atrativa para esse público. Mesmo que o preço cobrado seja baixo ou que a plataforma reveja essa decisão após a pressão da comunidade, o dano já está causado. A plataforma tem se mostrado instável e com a credibilidade bastante comprometida.
Por fim, pode-se ampliar o debate. A discussão sobre o Twitter está no complexo contexto atual dos sistemas baseados na Internet. Está em curso um grande choque de gestão e de visão. Saíram de cena os jovens idealizadores de startup baseadas em ideias revolucionárias. Entraram em cena os gestores buscando a otimização do lucro a qualquer custo. Note-se que não se está buscando um meio termo entre lucratividade e bem comum, está-se buscando a lucratividade. Tudo isso me faz lembrar de Aaron Swartz [11] e sua luta para que sistemas baseados na internet continuassem a pensar no bem comum. O lado animador é que ainda existe em alguns segmentos parte do sentimento que vigorava na primeira década deste século, quando os sistemas colaborativos emergiram. Aqueles que como eu não se alinham à visão unicamente mercantilista da atividade online, não terão dificuldade de encontrar plataformas alternativas que verdadeiramente buscam um equilíbrio entre o bem comum e a sustentabilidade econômica. Quem preza pelo bem comum deve estar em plataformas que tenham o bem comum como um dos valores, senão há uma grande contradição.
Não sei ainda qual plataforma alternativa que adotarei. Pretendo testar várias que estão emergindo. Por enquanto, será fácil me encontrar no Mastodon na instância @lesandrop@mastodon.social ou @lesandrop@fosstodon.org. A forma de me encontrar online estará sempre atualizada na minha página https://lesandrop.github.io
Referências
[1] Weller, K., Bruns, A., Burgess, J., Mahrt, M., & Puschmann, C. (Eds.). (2013). Twitter and society (p. 4). New York: Peter Lang. https://www.amazon.com/Twitter-Society-Digital-Formations-Katrin/dp/1433121697
[2] Forbes. Twitter Ends Its Free API: Here’s Who Will Be Affected. https://web.archive.org/web/20230205214533/https://www.forbes.com/sites/jenaebarnes/2023/02/03/twitter-ends-its-free-api-heres-who-will-be-affected/
[3] New York Times. Elon Musk Completes $44 Billion Deal to Own Twitter. https://web.archive.org/web/20230204183142/https://www.nytimes.com/2022/10/27/technology/elon-musk-twitter-deal-complete.html
[4] Kraut, R. E., & Resnick, P. (2012). Building successful online communities: Evidence-based social design. Mit Press. https://doi.org/10.7551/mitpress/8472.001.0001
[5] Ponciano, L., & Andrade, N. (2018). Perspectivas em Computação Social. Computação Brasil, Raquel Prates and Thais Castro (Eds.), 36, 30-33. https://www.lsd.ufcg.edu.br/~lesandrop/papers/Ponciano-2018-PerspectivasEmComputa%C3%A7%C3%A3oSocial.pdf
[6] G1. Twitter diz que irá analisar algoritmo de prévia de imagens após queixas de racismo por usuários. https://web.archive.org/web/20220925184613/https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/09/21/executivos-do-twitter-dizem-que-irao-analisar-possivel-vies-discriminatorio-em-algoritmo-de-previa-de-imagens.ghtml
[7] New Yorker. Why Twitter’s New Interface Makes Us Mad: A change like the new Chirp font might seem subtle. The effects are anything but. https://web.archive.org/web/20221220200535/https://www.newyorker.com/culture/infinite-scroll/how-social-media-redesigns-manipulate-us
[8] CNN. Twitter layoffs continue under Elon Musk. https://web.archive.org/web/20230202121242/https://edition.cnn.com/2022/12/22/tech/twitter-layoffs-continue/index.html
[9] Valgas, A., Carmo, F., Ponciano, L., & Góes, L. (2017, July). Análise da Popularidade, Visibilidade e Atividade de Diferentes Tipos de Robôs na Rede Social Twitter. In Anais do XIV Simpósio Brasileiro de Sistemas Colaborativos (pp. 1342-1356). SBC. https://doi.org/10.5753/sbsc.2017.9958
[10] The Guardian. Some popular accounts likely to disappear from Twitter as Elon Musk ends free access to API. https://web.archive.org/web/20230203165203/https://www.theguardian.com/technology/2023/feb/03/some-popular-accounts-likely-to-disappear-from-twitter-as-elon-musk-ends-free-access-to-api
[11] The Internet’s Own Boy: The Story of Aaron Swartz https://www.imdb.com/title/tt3268458/