As bases, força e persistência daquilo que faz sentido
19 de janeiro de 2025
Buscamos constantemente encontrar sentido no que está à nossa volta. Mas como percebemos que algo faz sentido? Qual é a base sobre a qual se constrói o sentido? Em quais situações nos equivocamos ao atribuir sentido? Esta reflexão agrega noções da razão por que percebemos que algo faz sentido e de por que coisas que fazem sentido tendem a permanecer ao longo do tempo.
No ambiente acadêmico, após explicar algo ao estudante, é comum usarmos a expressão "fez sentido para você?" Quando algo faz sentido para o estudante, a aprendizagem realmente ocorre. Quase todo mundo já passou por isso em matemática ou cálculo. Aquele momento em que se tenta insistentemente obter uma resposta igual àquela que o livro apresenta como correta. Não se obtém tal resposta em algumas tentativas. Após estudo, observa-se que uma etapa da solução deve ser diferente e, ao corrigir essa etapa, o resultado correto é finalmente obtido. Nesse momento, tudo faz sentido. Faz sentido porque o resultado anterior não era o correto e também faz sentido porque esse novo resultado é o correto.
A expressão "fazer sentido" (ou "ter sentido") é cheia de significados. Para esta reflexão, é suficiente entender a expressão "fazer sentido" como aquilo que é compreensível, que é de raciocínio familiar e que é coerente com a realidade observável. O sentido das coisas se forma na mente do sujeito. Há um componente objetivo e um componente subjetivo. Algo pode fazer ou não sentido para mim, assim como algo pode ou não fazer sentido para você. Há um componente individual da subjetividade do sujeito. No entanto, também há um componente objetivo externo ao sujeito. O que faz sentido precisa ser coerente com a realidade observável, e essa realidade é externa ao sujeito.
A base sobre a qual se constrói o sentido
O fazer sentido se torna menos subjetivo quando exigimos a coerência com a realidade observável. Por exemplo, para ter sentido, uma proposição deve ser constatável por meio de algum dos nossos sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato). Estabelece-se uma conexão entre o mundo interior do sujeito e o mundo exterior onde está a realidade observável. Compreender o sentido de algo requer um diálogo entre o mundo interior (sistema cognitivo) e o mundo exterior (natureza do fenômeno em análise). Se eu consigo ver e constatar que algo ocorre, então há sentido nesse algo, independentemente da minha opinião. Se você pode ver o que eu também vejo e temos um conhecimento comum sobre aquilo, então isso faz sentido para nós.
É preciso uma preparação interna para que algo seja compreensível. A compreensão se dá sempre a partir de conhecimento prévio. Essa preparação também é necessária para que se possa perceber neste algo um raciocínio que se aproxime do que se pode reproduzir internamente. Também é necessário conhecer a realidade observável para que se possa confrontar uma ideia com ela. Essa busca de sentido para as coisas parece um procedimento atípico, mas fazemos isso o tempo todo. Algumas vezes somos capazes de dizer claramente que algo não faz sentido. Outras vezes erramos por não estarmos preparados para ver sentido em determinadas coisas.
A discussão sobre o poder daquilo que faz sentido se aproxima um pouco da famosa frase de Victor Hugo (1802-1885): "Nada é mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou". Muitas vezes o sentido de algo não é notado até que as pessoas estejam preparadas internamente para percebê-lo. É comum se falar, por exemplo, de artistas que não são compreendidos pelos contemporâneos e que passam a ser notados por gerações futuras. Isso pode indicar que a sociedade mudou e aquilo passou a fazer sentido ou pode indicar que as pessoas evoluíram e se tornaram capazes de perceber sentido naquilo que era apresentado. Esse tipo de análise é comum nos escritos e na forma de vida do polêmico poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), cuja popularização e aceitação foi maior após sua morte.
O sentido das coisas na ciência e na vida
Recentemente, eu estava vendo um vídeo de um treinador (personal trainer). Ele explica que as pessoas pagam caro pelo serviço que ele oferece, mas que ele não aceita treinar pessoas que não se esforçam. Ele explica que não está interessado apenas no dinheiro, mas em ajudar a pessoa a atingir resultados. Há desgaste psicológico para o treinador quando o cliente não se esforça e, por isso, não atinge os resultados desejados. Ele criou um teste que é aplicado antes de admitir uma pessoa como cliente. O teste é um treino. A pessoa precisa andar por 1 hora, a cada dia, durante um mês, ininterruptamente. A cada dia, ela deve enviar ao treinador uma foto pós-treino. Se a pessoa realizar esse teste com sucesso, ela é aceita como cliente. Do contrário, ela não é aceita. A conclusão dele é que uma pessoa que não tem disciplina o bastante para cumprir uma tarefa simples como caminhar por uma hora, diariamente, durante um mês, ainda não desenvolveu a disciplina necessária para cumprir uma rotina de exercícios e dieta rigorosa que pode se estender por anos de treinamento. A maioria das pessoas não passa no teste dele. Esse teste faz sentido? Percebo sentido nele. É razoável concordar que a maior parte daqueles que não passam no teste não suportariam uma rotina que é bem mais exigente que o teste.
Uma outra situação. Costumo receber vários artigos de periódicos e conferências para revisar. É o chamado processo de revisão por pares (peer-review). Para esse processo funcionar, os pesquisadores precisam participar como revisores. Revisar artigo é um trabalho voluntário e que, para ser bem-feito, demanda dias de trabalho. Há duas vantagens óbvias de revisar artigos: aprender com a pesquisa reportada no artigo que está sendo revisado e contribuir com o processo de revisão por pares. É possível declinar das revisões. Já fiz isso algumas vezes. Por que eu declinei de revisar um artigo? Porque o artigo era totalmente alheio às coisas com as quais eu trabalho. Se é um artigo de área distante, ele toca em pontos desconhecidos e isso compromete minha capacidade de revisá-lo de forma precisa e justa. Há periódicos com editores que fazem um bom trabalho ao alocar os artigos aos revisores. Eu já recebi artigos que aceitei revisá-los na mesma hora. Foram artigos que tinham muita relação com as pesquisas que faço, com tópicos que estudo, com métodos que geralmente emprego nas minhas pesquisas. Portanto, eu tinha condições de emitir pareceres precisos e justos. Fazia sentido revisá-los. Se não fizesse sentido, era melhor declinar.
A busca de sentido está presente nas mais importantes contribuições científicas. A relação entre o sentido das coisas, sociedade e ciência é bastante comum na análise de teorias científicas. Considere, por exemplo, a teoria da evolução das espécies, proposta por Charles Darwin (1809-1882) em A Origem das Espécies (1859). A teoria propõe a evolução natural como forma de compreender o fenômeno de surgimento das espécies. Isso alcançou muita resistência na sociedade da época, que preservava uma explicação religiosa para esse fenômeno. Mas a teoria de Darwin, por ser científica, encontrava respaldo na realidade observável. Ou seja, pode ser constatada na observação da natureza, o que não era possível com a explicação religiosa que vigorava à época. Ao longo dos anos, a teoria de Darwin se consolidou como uma explicação plausível por seguir um raciocínio compreensível e chegar a um resultado coerente com a realidade observável. O que faz sentido tem força. É difícil se contentar com explicações limitadas depois de conhecer uma explicação que faz mais sentido, que é mais robusta.
Quando nos equivocamos ao atribuir sentido
Há situações em que se atribui um sentido equivocado às coisas. O caso mais óbvio é quando as pessoas analisam uma situação de modo emocional. Mas há também situações mais sutis ligadas à irracionalidade (pela Teoria da Racionalidade Limitada). Duas dessas situações são quando há viés de confirmação (confirmation bias) e falta de repertório.
O viés cognitivo da confirmação consiste na tendência do ser humano de atribuir sentido a algo considerando apenas a visão pessoal e pré-concepções que se tem desse algo, ignorando a realidade observável. Só é possível fugir disso com conhecimento e sempre buscando a conexão com a realidade observável. Algo para realmente fazer sentido tem que ter seu sentido posto à prova continuamente e resistir.
Na atividade de pesquisa, é recorrente olharmos um resultado e pensar: "isso não faz sentido, está errado, há um erro (ou bug) em algum lugar". Passamos horas ou dias buscando por erros nos cálculos até perceber que não existe erro. A percepção de que o erro não existe só ocorre quando se encontra uma explicação para o resultado e ele passa a fazer sentido. Passei por isso em um trabalho em 2010. Estávamos analisando a desaceleração (slow down) de execução de tarefas em sistema computacional distribuído. Com uma carga de trabalho fixa, aumentava o número de máquinas, quando não havia tarefa para executar, a máquina ociosa era colocada para dormir. Esperava-se uma queda na desaceleração quando se aumentava o número de máquinas. Mas os resultados mostraram desaceleração baixa, alta e depois baixaram novamente, à medida que se aumentava o número de máquinas. Depois de muitas análises, observamos que o pico de desaceleração ocorre devido ao efeito de colocar máquinas para dormir. Só fez sentido depois de muitas análises e aprendizagens.
O repertório tem grande impacto na percepção de sentido. Repertório é um termo usado na psicologia para designar o conhecimento que um indivíduo possui, mas também inclui seus comportamentos e habilidades. O repertório contém tudo que experimentamos ao longo da vida. Ele é a bagagem que temos para lidar com uma dada situação. Várias atividades contribuem para o repertório, como leituras, viagens, conversas, filmes, trabalhos, etc. Quando precisamos atribuir sentido a algo, se falta algo importante nesse repertório, talvez falte também sentido. Mas pode ocorrer algo pior que a falta de sentido, pode-se ver sentido em algo que não é verdade.
Como professor, percebo falta de repertório nos estudantes. Alguns não compreendem determinado método, equação ou algoritmo por falta de repertório, por terem estudado e treinado pouco os assuntos anteriores. Não é possível ver sentido em algo complexo cujas fundações se desconhecem. Na academia, cabe ao professor ajudar o estudante a entender o que precisa ser aprendido antes para que, posteriormente, algo novo possa ser verdadeiramente compreendido. Na vida, as pessoas algumas vezes se equivocam atribuindo sentido errado em razão de pouco conhecimento, o que é chamado de imperícia. Isso é fácil de detectar e resolver no campo da matemática ou lógica, mas, no dia a dia, nas relações interpessoais, torna-se desafiador.
A mentiras e, principalmente, as notícias falsas ("fake news") exploram as emoções, o viés de confirmação e a falta de repertório. Quem produz uma notícia falsa geralmente combina fatos e suposições ou mentiras com apelos emocionais. Isso produz um resultado incorreto, mas aderente às pré concepções das pessoas.
O que faz sentido resiste ao teste do tempo
Algo "não fazer mais sentido" geralmente significa que o contexto em que aquilo era válido perdeu a importância, se mostrou limitado e foi substituído. No campo científico, uma teoria se estabelece e faz sentido como explicação para um fenômeno até que se percebam suas limitações. Diante disso, surge uma teoria nova, que é mais robusta, que se mantém válida em contextos que a teoria anterior não conseguia abarcar. Ocorre a troca de uma teoria por outra. À medida que as teorias evoluem, surgem teorias mais fortes e persistentes, que fazem sentido por décadas ou séculos. O que faz sentido ganha estabilidade. Nota-se isso no exemplo da teoria de Darwin e no caso do estudante que aprende como solucionar uma equação matemática. Essa estabilidade e compreensão permitem a persistência, que advém da resistência a vários testes ao longo do tempo.
É difícil, e até desonesto intelectualmente, defendermos uma ideia depois de percebermos que há elementos dela que não fazem sentido. Na política ou nas disputas de influência, é comum ver a sustentação de ideias que não têm sentido. Isso ocorre, por exemplo, em campanhas eleitorais para funções públicas. O foco ali não é a ideia em si, mas o poder que será adquirido se as pessoas aderirem a tal ideia e levarem o candidato a ser eleito. Nesse caso, para ele pouco importa se depois demostrarem incoerência naquela ideia, pois o poder e a influência já foram alcançados com a eleição.
A obra e vida de Arthur Rimbaud e a famosa frase de Victor Hugo mostram que, muitas vezes, o sentido das coisas não se adequa a um momento histórico. Mas isso não deve impedir uma pessoa de fazer ou dizer algo cujo sentido ela vê. Se ela estiver correta, em algum momento, tal sentido será notado por outras pessoas. Creio que é esse raciocínio que leva bons cientistas a insistirem em suas demonstrações científicas, mesmo em momentos em que elas sofrem muita resistência da sociedade. É um raciocínio que também pode ser valioso nos desafios do dia a dia.
(Duas notas que podem ser relevantes. Primeira, essa reflexão é sobre o sentido das coisas e não sobre o significado das coisas. Essas duas palavras não são tratadas como equivalentes nesta reflexão. Segunda, a análise do sentido proveniente do repertório de uma pessoa e do sentido geral, que é observado por qualquer pessoa, evoca uma visão meio kantiana daquilo que é subjetivo e pertence ao mundo interno do ser humano e daquilo que é objetivo e independe do sujeito. Mas o objetivo aqui é apenas uma reflexão e não um ensaio de filosofia).
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