Livros bons exigem sintonia: notas sobre “O Mercador de Veneza” e “Em Busca de Mim”

Lesandro Ponciano

27 de julho de 2025

Livros bons exigem muito do leitor. Precisamos estar no “clima” do livro. É necessário estar na “vibe”, em sintonia ou em um estado mental que nos permita captar as sutilezas e emoções que o livro provoca. Pelo menos é assim comigo. Eu não consigo ler um livro de poesias quando estou com raiva, pois esse sentimento contaminaria a interpretação do poema. Ou, para ler autores como Rainer Maria Rilke e Khalil Gibran, preciso estar um pouco introspectivo. A implicação prática é que deixo alguns livros esperando o momento certo para serem lidos. Isso não significa postergar; deixo algo para depois, pois o momento ainda não chegou. Também há livros que precisam ser relidos, quando se sente que ainda não se estava tão preparado para eles. Na releitura, a imersão é maior.

Digo tudo isso, meu caro leitor, apenas para contextualizar duas leituras que fiz recentemente e que merecem notas neste blog: O Mercador de Veneza e Em Busca de Mim. Embora eu sempre esteja lendo algum livro, nos recessos do trabalho, nos meses de julho e janeiro, consigo priorizá-los. Nesse recesso, chegou o momento desses dois livros.

Eu vi uma entrevista sobre o filme Ó Paí, Ó em que Lázaro Ramos fez uma fala muito emocionada, que remete à questão racial e é inspirada em uma passagem de O Mercador de Veneza. O Mercador de Veneza é um clássico de Shakespeare que dispensa apresentação. O filme despertou minha curiosidade pelo livro. Eu estava indo de BH para Sabinópolis, em uma viagem de ônibus desnecessariamente demorada, e levei comigo O Mercador de Veneza. Em algumas horas de viagem, terminei o livro. Ele faz jus à fama que tem.

A passagem do livro a que o filme se refere é: “Por que ele é mais rico e poderoso, portanto, tem mais poder e dinheiro para nos perseguir mais ferozmente e nos maltratar com mais frequência. E por que isso? Judeus não têm olhos? Não têm mãos, órgãos, sentidos, inclinações, paixões, em tudo semelhante à sua gente? Não bebemos e comemos as mesmas coisas? Não estamos sujeitos às mesmas doenças e às mesmas curas através dos mesmos remédios? Caso nos espetem ou golpeiem, não nos ferimos do mesmo jeito e verteremos sangue em igual quantidade?”. É uma fala de Shylock, na qual ele usa argumentos sobre a humanidade compartilhada para questionar a diferença do tratamento dado a judeus e cristãos.

O que Lázaro Ramos disse no filme foi: “Eu sou negro, Boca. Eu sou negro sim. Mas por um acaso o negro não tem olhos, Boca, hem? Negro não tem mão, não tem pau, não tem sentido, Boca? Hem? Não come da mesma comida? Negro não sofre as mesmas doenças? Não precisa dos mesmos remédios? Quando a gente sua, não sua o corpo tal qual um branco, Boca? Quando vocês dão porrada na gente, a gente não sangra igual meu irmão, hem? Quando vocês fazem graça a gente não rir? Quando vocês dão tiro na gente, porra, a gente não morre também? Pois, se a gente é igual em tudo, também nisso vamos ser! O argumento da humanidade compartilhada foi trazido para questionar a diferença entre brancos e pretos. O vídeo abaixo mostra a interpretação dele, que é muito boa. Para ter criado essa versão a partir do que está no livro, o roteirista do filme estava em muita sintonia quando leu o livro.

Já de volta a BH, lembrei-me de outro livro: Em Busca de Mim, de Viola Davis. Era o momento certo para essa leitura. Meu caro leitor, que livro é esse? Eu não costumo ler biografias, mas Em Busca de Mim não se parece com nada que eu já tenha lido. É uma autobiografia intensa. Consigo até imaginar uma pessoa branca, rica e bonita que leia este livro e que ele não diga nada para ela. Mas, se você viveu ou vive a pobreza, a violência física e psicológica, o racismo, ou foi considerada feia fisicamente pela sociedade, é muito provável que este livro vá te impactar. Ele me pegou muito forte. Não pretendo entrar em detalhes do texto, mas compartilho um pouco do contexto.

Em Busca de Mim é escrito em primeira pessoa. A leitura é extremamente fácil. Li em dois dias e creio que esse seja o tempo comum para a maioria das pessoas. A autora constrói imagens mentais universais: a infância, a família, a casa, a escola, os vizinhos, os medos, as vergonhas, os sonhos, a esperança. Nesses aspectos, ela desenvolve uma narrativa que nos permite não apenas conhecer e pensar a história dela, mas também refletir sobre a nossa própria história. É inevitável pensar algo como: “Tive um colega de infância que era um pestinha assim”, “Na minha família também tinha esse problema”, “Isso se parece com a história que ouvi da família de fulano”, etc. A carga emocional do livro é muito grande. Há dois capítulos que achei particularmente dolorosos, pelo nível de sofrimento narrado: “7 A Irmandade” e “8 Vergonha Silenciosa e Secreta”.

Às vezes eu me incomodava com o fato de que pessoas negras precisam dedicar tempo e energia para discutir raça. Por que uma atriz renomada não pode viver sua arte sem, em algum momento, ter de entrar em uma discussão ou ativismo racial? Cada vez mais, vejo que ainda vivemos em uma sociedade na qual não é facultado ao negro não entrar nesse assunto, pois sua raça continua sendo uma marca profunda. O argumento da humanidade compartilhada de O Mercador de Veneza e de Ó Paí, Ó ainda é apenas um ideal. Há uma passagem de Em Busca de Mim que é sintomática sobre isso: “Existe um abandono emocional que vem com a pobreza e com o fato de ser negro. O peso do trauma geracional e da luta por necessidades básicas não deixa espaço para mais nada. Você apenas acredita que não passa de lixo.” Uma vez que uma pessoa se livra desse peso, ela sente a necessidade de dizer a outras que elas também podem se libertar. A discussão e o ativismo são uma questão de acolhida.

Uma observação sobre a tradução. Li a 13ª edição de Em Busca de Mim. A tradução é de Karine Ribeiro. É preciso reconhecer o excelente trabalho que foi feito. Tanto expressões muito específicas dos Estados Unidos, quanto questões de raça empregadas apenas no inglês foram muito bem traduzidas para o português. Muitas vezes fiquei pensando: nossa, isso é tão brasileiro. A realidade é que a tradução adaptou muito bem a linguagem e a cultura.

Bem, meu caro leitor, espero que tenha visto alguma relevância nessas análises. Essas foram duas leituras interessantes que fiz recentemente e que há algum tempo eu aguardava o momento certo. Eu não canso de me surpreender com o quanto ler me afeta. Às vezes os livros são como um espelho que, intencionalmente ou não, mostram a nós um pouco de quem somos quando lemos. Se esses livros estiverem em sintonia com o que você busca, talvez você também goste. Como disse no início, há livros que preciso reler em outros momentos para compreendê-los em profundidade ainda maior. Certamente, Em Busca de Mim é um deles.

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