A autopreservação no poema “Não! Só quero a liberdade!” de Fernando Pessoa
Lesandro Ponciano
05 de março de 2025
Este ano Belo Horizonte foi tomada de bloquinhos de Carnaval. Não me aproximo deles. Às vezes escuto o barulho que fazem quando passam lentamente ao longe. Para esse feriado, eu tinha planejado começar a ler dois livros que há tempo aguardam na minha lista. Não peguei em nenhum deles. Faltou disposição. É preciso entrar no estado mental que o livro exige. Requer o esforço de alinhar os sentimentos ao que o autor deseja para que a história seja sentida. Essas leituras ficaram para depois. Procurei outro entretenimento.
Entre um vídeo e outro, encontrei na TV uma playlist de poemas de Fernando Pessoa. Se os romances precisam de um estado mental para avançar com a leitura, os poemas se adequam ao estado de quando são lidos. Poemas são como a cor do camaleão; seus significados se adequam ao ambiente. Ouvi uma playlist de 15 poemas. O poema “Não! Só quero a liberdade!” chamou a minha atenção.
Não! Só quero a liberdade! Não! Só quero a liberdade! Amor, glória, dinheiro são prisões. Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles? Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo. Quero respirar o ar sozinho, Não tenho pulsações em conjunto, Não sinto em sociedade por quotas, Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim. Onde quero dormir? No quintal... Nada de paredes — ser o grande entendimento — Eu e o universo, E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos, O grande abismo infinito para cima A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara, Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo. Não quero! Dêem-me a liberdade! Quero ser igual a mim mesmo. Não me capem com ideais! Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras! Não me façam elogiável ou inteligível! Não me matem em vida! Quero saber atirar com essa bola alta à lua E ouvi-la cair no quintal do lado! Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... " Amanhã vou buscá-la ao quintal" Buscá-la ao quintal Ao quintal ao lado… 11-8-1930 Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 136. http://arquivopessoa.net/textos/3343
“Não! Só quero a liberdade!” é aquele tipo de poema que fica na nossa memória. Ele é um grito de protesto. É como se o autor dissesse “me deixe em paz” ou “fique com suas coisas e me deixe com as minhas”. O poema cunha um significado próprio para o termo liberdade. O desejo de “ir ter comigo” e “ser igual a mim mesmo” é uma busca de liberdade como introspecção e independência. Não querer ser outra pessoa além de si mesmo é a liberdade colocada como preservação da individualidade.
O poema eleva a liberdade ao extremo da intimidade. A perda dessa intimidade é equiparável à morte do indivíduo em vida. Morre-se em vida quando se desiste de viver de acordo com os próprios princípios, quando se passa a viver em função de parâmetros estabelecidos por outros, quando se deixa de ser quem é. Como é forte o verso “Só quero a liberdade!”. Destaque para o “só”. Deseja-se somente isso e nada mais? Fica subentendido que essa super elevação e ampliação do conceito de liberdade o faz embarcar tudo que é relevante à individualidade do ser. Mesmo que a liberdade não seja suficiente para sua existência, ela é fundamentalmente necessária. Portanto, ela é desejada como que sem ela nada mais fosse possível.
Essa mensagem, preservada desde os anos de 1930, chega ao nosso tempo quase que com afronta ou desprezo ao estilo de vida atual. O que mais se busca atualmente é atenção dos seguidores para se obter likes, views, compartilhamentos, fama, etc. Ninguém posta uma foto no Instagram ou se fantasia para bloquinho de carnaval sem a intenção de ser visto. Há grande necessidade de fazer vista a "caveira tapada de carne". Hoje o reconhecimento externo é moeda social. Os influenciadores ditam o que comer, o que vestir, como agir, o que pensar e ninguém grita: "Não me capem com ideais! Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!". Assim, é como se o poema se atrevesse a nos dizer que a vida na contemporaneidade é uma prisão. É como se ele dissesse que as pessoas estão se aprisionando e morrendo em vida ao buscar fora de si o que deveria ser buscado em sua própria intimidade.
Será que mudamos o conceito de liberdade nesses quase 100 anos e o poema perdeu contexto? Pode-se argumentar que essa visão de liberdade de Fernando Pessoa já era avançada para o seu tempo e nisso nada mudou. Claro, Fernando Pessoa fala do seu estilo de vida. Penso que o grito de liberdade feito naquela época ressoa mais alto hoje em que estamos ainda mais distante dessa visão de liberdade.
Caso você tenha gostado deste texto, talvez também se interesse por:
- Qual é a mensagem de Seu Tomás da bolandeira em “Vidas Secas”?
- O que dizer de Rodion Românovitch Raskólnikov?
- Sobre o livro “Seara Vermelha” e questões sociais e políticas
.
Você pode encontrar informações sobre mim no meu site. Quando escrevo algo, ele aparece neste XML RSS feed, que pode ser cadastrado em leitores de XML RSS feed como a extensão para Chrome RSS Feed Reader ou Feedly.