Sobre o livro “Seara Vermelha” e questões sociais e políticas

Lesandro Ponciano

27 de maio de 2023

O livro Seara Vermelha publicado por Jorge Amado, em 1946, estava na minha lista de leitura há muitos anos. Passei muitas horas em aeroportos entre fevereiro e abril e aproveitei a oportunidade para lê-lo. A história narrada no livro se passa por volta dos anos de 1930 e mostra luta dos sertanejos do Nordeste do Brasil, sua situação de trabalho semi-feudal, fome e retirada para a cidade de São Paulo, localizada no sudeste do país e conhecida como rica e próspera. Neste texto, eu não pretendo fazer uma resenha do livro. Busco apenas destacar algumas percepções pessoais. A principal percepção é que as características e percursos de alguns personagens do livro se assemelham com as características e percursos de pessoas que eu via principalmente durante a minha infância vivendo no leste de Minas Gerais. Note que a história de Seara Vermelha se passa principalmente nos estados do nordeste e no norte de Minas Gerais. A sensação que tenho é que as semelhanças que observo são parte de um fenômeno sociológico que Jorge Amado captou e registrou brilhantemente.

Uma parte do livro me trouxe uma visão diferente sobre o efeito do sofrimento sobre o ser humano. Eu sempre acreditei que o sofrimento torna as pessoas melhores. No sentido de levá-las a definir o que tem valor essencial, cultivar o desprendimento e remover o que é insignificante. Algo bem na linha da música “Se eu quiser falar com Deus” de Gilberto Gil: “Tenho que virar o cão. Tenho que lamber o chão. Dos palácios, dos castelos. Suntuosos do meu sono. Tenho que me ver tristonho. Tenho que me achar medonho. E apesar de um mal tamanho. Alegrar meu coração”. Ou na linha de Kindness de Naomi Shihabnye: “Before you know kindness as the deepest thing inside. You must know sorrow as the other deepest thing.” Mas o livro traz uma provocação interessante de que o sofrimento não torna ninguém melhor: “— Como é que você, depois de ter sofrido tanto, você e sua família, ainda tem coragem de bater na criança? Não tem pena? O homem levantou os olhos, falou com sua voz humilde: — O sofrimento não faz ninguém ficar bom, seu doutor… O sofrimento só piora a gente, só faz ficar ruim…” Então, na visão literária, o sofrimento pode nos tornar melhores ou piores, a depender do contexto.

Marta é uma personagem muito marcante no livro. Toda a história da vida dela é tocante. A parte final da história é bastante triste, embora não incomum. Essa parte me lembra um pouco a canção “A vida é um moinho” de Cartola: “Ouça-me bem, amor. Preste atenção, o mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho. Vai reduzir as ilusões a pó. Preste atenção, querida. De cada amor, tu herdarás só o cinismo. Quando notares, estás à beira do abismo. Abismo que cavastes com seus pés”. Sem a rebeldia de ser ela a decidir pela partida ou de cavar o abismo, a parte final da narrativa da vida dela reporta algo similar à canção: “E Marta tomou o caminho do cabaré e da rua de prostitutas. Como era nova por ali apareceu uma freguesia grande. Dias depois estava doente mas custou a sabê-lo, nada entendia daquilo. Foi Epaminondas quem a tratou (herdara aquela clientela de Diógenes), mas tão distante e frio que nem parecia o homem ansioso de quinze dias passados. Marta emagrecera e agora pintava a cara e os lábios, fizera dois vestidos e comprara uns sapatos.”

A personagem Zefa, me lembrou muito uma senhora chamada por muito de “Dona Zezé”, que eu via na minha cidade natal no interior de Minas Gerais. Ela era conhecida na cidade por ser “doida”. Recordo de meus familiares dizendo que ela tinha sido uma das mulheres mais “trabalhadoras” daquela região. Que tinha muita força para colheita de café. Mas que, em uma certa idade, passou a apresentar sinais de doença mental. Falava coisas que ninguém entendia e andava a esmo pela cidade. No contexto do livro, no caso de Zefa, a insanidade mental ganhou uma dimensão religiosa. Dona Zezé, assim como Zefa, apresentava momentos de muita lucidez. Os dois casos também revelam uma íntima relação entre uma dedicação notável ao trabalho e uma perda de sanidade. Já presenciei vários outros casos dessa relação, que são ainda mais dramáticos que o de Zefa e Dona Zezé.

Sempre ouvi histórias de pessoas conhecidas como “videntes”. Nos períodos de maior crise financeira ou de tensão social, elas anunciam o fim do mundo. É como se sentissem ou sofressem com mais intensidade o que estava afetando a todos. Ou, elas simplesmente se elevam (passam a ter atenção) durante as situações confusas. No livro, o Beato Estêvão talvez seja a versão ampliada disso. Porém, não é raro. Casos de videntes assim surgem entre os marginalizados quando há uma situação de intensa miséria e conflito social. A citação “Os beatos e os cangaceiros acabarão no dia em que os sertanejos tiverem consciência política” reflete esse contexto. Essa é uma das melhores citações do livro. Diante de riscos existenciais e de grande injustiça social, as pessoas recorrem ao extremismo e à divindade. A organização política pode ser uma resposta civilizada aos mesmos problemas. Um parênteses é que Jorge Amado tem uma percepção política e uma história pessoal na política que são bastante interessantes - pretendo, em algum momento, aprofundar na leitura disso.

Morei por oito anos na Paraíba e a culinária nordestina não se parecia nem um pouco com o que conhecia do leste de Minas Gerais. Por volta do ano de 2010, uma edição do festival gastronômico “Comida di Buteco”, em Belo Horizonte, teve o norte de Minas Gerais como tema culinário e fiquei surpreso de como a culinária no norte de Minas é semelhante à culinária que eu via na Paraíba. O romance traz elementos interessantes de como muitos imigrantes nordestinos chegavam em Minas Gerais pelo rio São Francisco e ficavam no norte de Minas Gerais, não conseguindo ir ao destino final que era São Paulo: “Alguns ficavam para sempre em Pirapora. Dormiam na margem do rio, pelos matos, construíam choupanas no outro lado da ponte, roubavam e até assaltavam”. Talvez, se isso ocorreu na realidade, ajude a entender as influências na culinária do norte de Minas Gerais. Mas isso é só especulação. As influências culturais entre Minas Gerais e os estados do nordeste provavelmente vão muito além do que ocorreu no êxodo rural daquela época. Esse é outro ponto sobre o qual quero me aprofundar no futuro.

Eu não tenho conhecimento de um fenômeno migratório similar ocorrendo dentro do Brasil nos dias atuais. Trazendo para a atualidade, a melhor analogia que vejo entre algo real e o que é reportado no livro é o processo migratório de pessoas dos países pobres para os países desenvolvidos. Pirapora é no livro uma cidade intermediária entre os estados do nordeste e São Paulo, assim como atualmente o México é um país intermediário entre países da américa do sul e os Estados Unidos. Os dramas econômicos e sanitários vividos pelos personagens do livro se assemelham muito ao drama vivido pelas pessoas de países africanos que arriscam suas vidas em barcos tentando chegar ilegalmente ao litoral de países europeus.

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