Qual é a mensagem de Seu Tomás da bolandeira em “Vidas Secas”?

Lesandro Ponciano

19 de julho de 2024

Neste recesso de meio de ano, reservei um tempinho para reler “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, 1938, como parte do meu estudo da literatura brasileira sobre tempo e clima. Livro que li apenas uma vez, há mais de 25 anos. Depois de tantos anos, minha memória se tornou seletiva sobre algumas partes da história. Eu me lembrava de poucos detalhes. Por exemplo, eu recordava a morte da cadela Baleia e da consternação que isso causou nos personagens, mas não recordava as circunstâncias da morte, o tiro de espingarda, a agonia.

Na primeira vez que li esse livro, cursava o ensino fundamental. Fizemos, em grupo, uma interpretação. Foi uma pequena peça de teatro sobre a história. Vestidos como os personagens e nos comportando como eles, caminhamos contornando a plateia, ao som de uma música triste. Evitamos a reprodução das falas dos personagens. Alguns professores elogiaram. Minha recordação tinha muito a ver com esse pequeníssimo recorte que fizemos da jornada de Fabiano, Sinhá Vitória, as duas crianças e Baleia.

Gosto de personagens interessantes e hoje vejo Vidas Secas como uma preciosidade nesse aspecto. O estilo do livro, incluindo a organização dos seus capítulos, parece ter sido pensado para enfatizar os personagens. Sinhá Vitória, Fabiano, o Filho Mais Novo, o Filho Mais Velho, o Soldado Amarelo e Baleia são destacados, cada um tem um momento reservado na narrativa. É como se Graciliano Ramos dissesse “olha, veja esse personagem” e não apenas “veja essa ação na história”. Há um personagem do qual eu não recordava nada. Não é um personagem enfatizado na história, embora mencionado (ou referenciado) por três outros personagens. Estou me referindo a seu Tomás da bolandeira.

Seu Tomás da bolandeira é mencionado por Fabiano como uma pessoa erudita, que lê muito, que sabe palavras difíceis, que podia votar. Trata-se de alguém que inspirava respeito, alguém que não sabia mandar, mas sim pedir. Fabiano acredita que Deus fez seu Tomás um “homem aprendido” e fez ele, Fabiano, “um (homem) bruto”. O menino mais velho recorda seu Tomás da bolandeira como alguém que lhe deu um brinquedo, que havia se quebrado. Sinhá Vitória via a cama desse personagem como uma “cama de verdade”, confortável, em contraponto à sua “cama de varas”. São essas algumas das poucas menções que identifiquei ao longo da narrativa.

O que chamou a minha atenção nesse personagem é que ele ganhou traços de um “nerd” em meio à trágica situação da seca. Isso bem antes da caricatura de “nerd” ser construída e tornada popular na cultura atual. É bastante interessante que a história confronta seu Tomás da bolandeira, o nerd, com um mundo físico em que a capacidade intelectual tem pouca aplicação. Vale transcrever uma frase de Fabiano: “Seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros”. Por fim, ele traça um destino triste: “viera a seca, e o pobre velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole”.

A história nos permite imaginar que seu Tomás da bolandeira lia sobre a seca, que ele sabia o que estava acontecendo ou que estava por vir. Mas havia como fugir, para além do emigrar ao qual todos recorriam? Uma grande seca cobre regiões inteiras e não apenas algumas cidades ou estados. Ampliando o raciocínio: é como as mudanças climáticas que tanto debatemos atualmente. Há alguém que possa fugir totalmente das mudanças climáticas apenas por ter dinheiro e conhecimento? Isso não é possível, a menos que a pessoa consiga sair do planeta, o que as tecnologias disponíveis ainda não permitem. Ser erudito, saber palavras difíceis, ter lido vários livros é certamente algo que nos permite pensar melhor e reagir melhor aos desafios que estão colocados. Talvez isso permita adaptar e mitigar os eventos catastróficos. Mas a sina de seu Tomás da bolandeira deixa claro que se a catástrofe chegar o erudito morre assim como os brutos. Então Fabiano é atual: “Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros”.

Mas imaginemos que houvesse como fugir da seca (ou das mudanças climáticas), seu Tomás da bolandeira fugiria? Por ser retratado como alguém erudito, que pede e não manda, podemos pensar que ele compreendia e era sensível à sociedade da qual faz parte. Isso nos permite desenvolver o pensamento de que ele compreendia o destino compartilhado. Fugir enquanto outros menos favorecidos morrem não é um gesto que estaria à altura da erudição que lhe é atribuída.

Seu Tomás da bolandeira é um personagem secundário e quase figurante, apenas lembrado pelos personagens principais, sem fala própria, sem ação de efeito na história, mas repleto de significados.

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