A Relevância da Leitura na Era dos Vídeos, Audiobooks e Inteligência Artificial
14 de dezembro de 2024
Com pouco esforço, pode-se encontrar na internet muitas informações sobre os efeitos do hábito de leitura na cognição e no declínio cognitivo. Em uma rápida conversa com uma inteligência artificial generativa da moda, como ChatGPT, Copilot ou Gemini, pode-se obter uma lista extensa de razões para manter o hábito de leitura. Uma lista extensa que talvez poucas pessoas se disponham a ler completamente. Perguntar sobre isso para essas inteligências artificiais já é indicativo de que se busca um resumo ou síntese. A busca por informações profundas se daria em outros meios. Surpreendentemente, a discussão sobre ter ou não um hábito de leitura desperta algumas emoções, principalmente nas pessoas mais jovens, que atualmente se envolvem mais com imagens e vídeos do que com textos.
Por se tratar de uma geração que apresenta dificuldade para manter a atenção em um vídeo curto de 30 segundos no TikTok, é natural que o fluxo de ideias ao longo de capítulos inteiros de um livro não seja percebido como atrativo. No entanto, é essa leitura profunda, que requer imersão, que gera muitos dos benefícios cognitivos, de concentração, de memória e de vocabulário. Ler fragmentos de postagens de 240 caracteres ou frases soltas em mensagens do WhatsApp também é leitura e pode permitir a comunicação entre os interlocutores, mas não há evidência de que essa leitura ocasione o exercício imaginativo de construção de significados e interpretações como ocorre em leituras mais profundas. Nesse ponto, há quem faça uma ressalva para os poemas, que podem ser curtos e profundos. Mas, enfim, a mensagem é que não se trata apenas de ler, mas do que se lê.
Mas e os audiobooks? Neles não há o exercício da leitura, mas ainda há algum espaço para o leitor construir na sua mente a história e pensar sobre ela. Eu já usei várias vezes o recurso de leitura de textos científicos, mas nunca na primeira leitura do texto. O que ocorre geralmente é que preciso voltar a um texto científico que li há muito tempo. Nessa situação, costumo usar o serviço de leitura do leitor de arquivos PDF e ouvir o texto enquanto faço outras coisas. Vou ouvindo e recordando o artigo. Há alguns livros de literatura ficcional que primeiro ouvi e só depois li. Esse é o caso, por exemplo, de "The Prophet" de Khalil Gibran (1883-1931). Escutei o audiobook em inglês e só depois li o livro. Nesse caso, ouvir era necessário para que eu melhorasse a compreensão do inglês. Mas o problema desse uso de audiobook é a linearidade da velocidade de leitura. Quando estou lendo, costumo demorar um pouco mais em algumas frases mais profundas do que em outras. No audiobook, tudo fica na mesma velocidade. Clicar em pause o tempo todo é trabalhoso, então, algumas reflexões que seriam mais profundas na leitura se tornam mais rasas quando apenas se ouve a leitura.
Como docente, sempre incentivo os estudantes a desenvolverem um hábito de leitura. Não consigo imaginar um estudo sério e transformador sem uma leitura profunda das contribuições feitas por pessoas que se dedicaram ao estudo daquela área. Portanto, é essencial se debruçar sobre os livros didáticos e científicos que são referência na área. No entanto, a leitura não é algo meramente funcional. Deve-se encontrar prazer na leitura. Recordo, por exemplo, quando li pela primeira vez "Encontro Marcado" de Fernando Sabino (1923-2004), "O Apanhador no Campo de Centeio" de J. D. Salinger (1919-2010) ou "Cem Anos de Solidão" de Gabriel García Márquez (1927-2014). Foram leituras muito prazerosas. Ler por prazer é essencial para a manutenção do hábito de leitura. Os benefícios do hábito de leitura podem ser potencializados por uma leitura que seja agradável.
Eu já me engajei em leituras muito extensas, assim como também já desisti de ler alguns livros. Geralmente, dou crédito ao livro até a página cinquenta. Se até esse ponto ele não despertou meu interesse ou se mostrou complexo demais para mim, eu interrompo a leitura. A exceção é quando se trata de um livro muito recomendado por amigos que sabem o tipo de literatura que me agrada. Eu já li vários romances bem extensos, com mais de mil páginas. Em alguns casos, foram meses de leitura, como ocorreu com "Crime e Castigo" de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e "O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta" de Ariano Suassuna (1927-2014). É necessária uma afinidade entre o leitor e a história para seguir prazerosamente por leituras extensas. A capacidade de construir histórias extensas, mas que mantêm a atenção do leitor, é uma das coisas que distinguem muitos bons escritores dos apenas bons.
Muitos estudantes não gostam nem de ouvir falar em ler. As recomendações de leitura são recebidas quase como uma ofensa. Conheci muitos estudantes que tratam a leitura como um sacrifício. A leitura dos slides é o máximo que alcançam; raramente consultam os livros nos quais os slides são baseados. Dizer ao estudante que ele deveria ler mais soa para ele quase como uma hostilidade. É cada vez mais comum estudantes não saberem o significado de palavras que são corriqueiras em qualquer livro; é notável um empobrecimento do vocabulário. Certa vez, ao dizer aos estudantes de uma turma que eles precisam ler mais, não apenas pelo conhecimento, mas também pelo desenvolvimento cognitivo, fui recebido com críticas. Um estudante disse: os benefícios da leitura são os mesmos de ver um vídeo, sua geração lê textos e a minha vê vídeos. Eu não encontrei nenhum vídeo que explicasse como o paralelo que ele estabelece está errado. No entanto, encontrei vários textos que expliquei e recomendei, mas tenho quase certeza de que ele não leu.
Creio que um dos efeitos imediatos mais danosos da falta de leitura é a baixa capacidade de raciocinar. Raciocinar é organizar informações logicamente, fazer associações entre informações, integrar ou contrastar diferentes informações. A leitura provoca esse exercício continuamente. É preciso manter em memória os fatos, os personagens e os cenários. É preciso associar, integrar e contrastar essas informações para se compreender o sentido da história. Tudo isso é um exercício cognitivo que gera reserva cognitiva importante para o ser humano. Curiosamente, outra atividade que também gera essa reserva está sendo substituída por tecnologia: aprender um segundo idioma.
Recentemente, eu li um argumento interessante que tenta explicar por que algumas pessoas têm facilidade de leitura e outras não. O argumento era: "não é que a leitura molda o cérebro, mas sim que há pessoas que têm o cérebro moldado para leitura e outras pessoas não têm o cérebro assim; o cérebro dessas é moldado para outras tarefas". Não sei se esse argumento se sustenta cientificamente. Mas certamente é uma hipótese a ser considerada. Se é verdade que eu gosto de ler porque meu cérebro é naturalmente bem moldado para isso, também é razoável pensar que há pessoas que não gostam porque o cérebro delas tem mais dificuldade para lidar com esse tipo de tarefa. No entanto, não é porque algo é desafiador ou desconfortável que deve ser totalmente eliminado.
A falta de leitura pode limitar a capacidade da pessoa de manter informações em memória ou de ser capaz de operar sobre informações complexas em memória. Apenas para traçar um paralelo, é nesse ponto que critico afirmações como "eu não preciso saber disso porque posso perguntar ao ChatGPT ou ao Gemini e eles me respondem". O problema é o ser humano não possuir a informação consolidada no seu sistema cognitivo, pois, quando ele precisar tomar uma decisão complexa que envolve associar, integrar ou contrastar informações, faltará informação para tomar a decisão. É diferente o ChatGPT saber algo e o ser humano saber algo. Há informações que são fundamentais e que precisam estar na nossa memória para além dos nossos computadores, senão não temos o mínimo necessário para pensar. São as informações que temos em nossa memória que nos permite ter intuições e ideias sobre como resolver determinados problemas. A leitura atenta é bastante efetiva na internalização da informação.
É importante olhar com realismo a construção do hábito de leitura nos dias atuais. É válido tentar se valer de outras mídias. Em alguns casos, elas são realmente efetivas, como quando buscamos por acessibilidade ao conteúdo. No entanto, é perigoso apenas abandonar o hábito de leitura ou tratá-lo como algo obsoleto. É necessário construir, desde os primeiros anos de alfabetização, o hábito de leitura prazerosa. Caso isso não ocorra, podemos observar novamente uma elitização do acesso ao conhecimento mais profundo, semelhante à época em que as sociedades sofriam com um baixo nível de alfabetização. O aumento da expectativa de vida requer que as pessoas cheguem à velhice com uma alta reserva cognitiva e o hábito de leitura também contribui para esse fim. Por tudo isso, é fundamental promover a conscientização social sobre a importância do hábito de leitura.
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