Sobre analfabetismo, visualização, correções com caneta vermelha, notas vermelhas e azuis

Lesandro Ponciano

23 de outubro de 2024

Esta semana eu participei de um seminário de visualização de dados. Conversando com um colega, eu me lembrei de alguns casos bem antigos, que gostaria de compartilhar nesta publicação.

Vivíamos em um mundo bem diferente no fim da década de 80 e início da década de 90 do século XX. Eu era uma criança. A observação que eu fazia do mundo era a observação que cabia naquelas que eram as preocupações de criança. Naquela época, o boletim escolar aterrorizava muito as crianças. O boletim era a materialização do sucesso ou do insucesso. Chegava a cada bimestre para ser assinado pelos pais. E cabia aos pais chamar a atenção dos alunos quando suas notas eram baixas.

No bairro em que eu morava, grande parte das mães e pais eram analfabetos. Como eles poderiam analisar o boletim para cobrar mais estudo dos filhos? Eles entendiam as notas? Eles entendiam os conteúdos curriculares? Creio que eles não entendiam nada disso. No entanto, a escola tinha um recurso que era muito inteligente. Quando a nota do estudante no bimestre estava abaixo da média (abaixo de 60% dos pontos distribuídos), a nota era escrita com caneta vermelha. Senão, ela era escrita com caneta azul. Era uma visualização muito simples, mas também muito efetiva.

A única coisa que a mãe ou o pai precisava fazer era olhar se a nota escrita no boletim do seu filho estava em cor vermelha ou cor azul. Cada número escrito em cor vermelha era um sinal de problema, independente do número. O boletim como um todo era quase um mapa de calor. Isso era muito efetivo. Lembro de várias conversas entre senhoras. Uma perguntava “como está esse menino na escola?”, olhando para a criança. E a outra respondia “Está muito mal, boletim cheio de notas vermelhas, vou falar para o pai dele” e a criança toda encolhida. Lembro da minha mãe brigando com um irmão mais novo por causa do boletim com nota vermelha.

Esse é um recurso de visualização muito efetivo para os pais que eram analfabetos. Eles não eram capazes de entender os números, mas entendiam as cores. Eu não sei se esse esquema de cores foi pensado para os pais que eram analfabetos. Se foi pensado com esse propósito, quem pensou isso merece o reconhecimento, pois funcionava. Se não foi pensado para isso, esse efeito colateral foi muito positivo.

Mas eis que veio a informatização das escolas no fim dos anos 90 e início dos anos 2000. Com a informatização, os boletins deixaram de ser escritos a mão e passaram a ser impressos a partir do computador. Tinta colorida para impressoras eram caras (e ainda são). Os boletins da minha escola não tinham mais distinção de cores, era tudo escrito em cor preta. As notas abaixo da média passaram a ser marcadas com asteriscos (*), mas essa visualização não era tão efetiva. Ela não tinha o mesmo apelo visual que as cores vermelha e azul. Nunca mais vi pais falando sobre as notas dos filhos.

Não sei se esse recurso de dar cores às notas ainda é usado em algum lugar. Creio que não seja mais usado. Muitas coisas que tinham um propósito de chamar a atenção foram aos poucos sendo negativadas pela sociedade. A caneta vermelha é uma delas. Mesmo na universidade, que é onde exerço a docência. Por exemplo, eu ainda faço correção de provas marcando com caneta vermelha, mas muita gente critica essa prática. Faço com caneta vermelha por que o estudante não pode responder as questões com caneta nessa cor e ao usar essa cor eu garanto que minha correção não se confundirá com a resposta do estudante. Então, coloco em vermelho tanto o que está correto como o que está errado.

Em correções de texto, como o TCC de alunos, eu costumava anotar com caneta na cor vermelha. Mas isso gerava descontentamento. Teve uma vez que um estudante leu o texto dele todo anotado de vermelho e falou “Meu TCC está sangrando”, “Meu TCC está pingando sangue”. É fato: quanto mais deficiente fosse o trabalho, mais marcado ele ficava e maior era o efeito visual. Hoje em dia eu não corrijo mais no papel, corrijo no PDF fazendo anotações e evito a cor vermelha. Não evito por que eu ache que ela não seja adequada, mas sim para evitar que ela cause uma percepção que não é a desejada.

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