Por Lesandro Ponciano
, em 3 de novembro de 2025.
Ao analisar o texto de uma pesquisa de doutorado, muito se revela, mas nem tudo é visível. É essencial olhar para além do documento. É preciso observar o processo completo, compreender como as ideias se desenvolveram e ganharam forma no texto final. Além disso, é necessário verificar o que ocorreu após a conclusão formal da pesquisa. Quais foram os desdobramentos e as repercussões? O que se mostrou útil e o que se perdeu com o tempo? Como bem disse José Saramago, no livro A Caverna: "O tempo é um mestre de cerimônias." Ele coloca cada coisa no lugar que lhe compete. O tempo é essencial para uma reflexão sólida. Por isso, no meio científico, é tão valioso observar experiências e resultados com distanciamento temporal.
Neste mês, completam-se 10 anos da defesa da minha pesquisa de doutorado. Trata-se do trabalho intitulado Computação por Humanos na Perspectiva do Engajamento e Credibilidade de Seres Humanos e da Replicação de Tarefas. Foi conduzido sob a orientação do professor Francisco Brasileiro (Fubica), na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Eu me dediquei exclusivamente a esse trabalho entre os anos de 2012 e 2015. A defesa do resultado final ocorreu no dia 23 de novembro de 2015. Os avaliadores foram a professora Jussara Marques de Almeida (UFMG) e os professores Rafael Duarte Coelho dos Santos (INPE), Herman Martins Gomes (UFCG) e Nazareno Ferreira de Andrade (UFCG). Os slides usados na defesa estão disponíveis online. A imagem abaixo é um desenho feito a partir de uma foto tirada no momento de arguição, durante a defesa. A professora Jussara e o professor Rafael não aparecem na imagem, pois não estavam presentes presencialmente e participaram da defesa remotamente.
O objetivo deste texto é revisitar o trabalho e seu processo de desenvolvimento sob uma perspectiva reflexiva. Dez anos depois, é possível sintetizar alguns aprendizados. Muitos relatos e histórias apresentados aqui não estão presentes na tese. São conteúdos muito pessoais que não cabiam ser discutidos na tese ou cujo significado e importância ainda não eram plenamente compreendidos. Aprendi, sobretudo, que a ciência nunca é uma jornada solitária: ela floresce no diálogo com colegas, voluntários e comunidades, e esse caráter coletivo revela lições que ultrapassam fronteiras disciplinares e permanecem válidas ao longo do tempo. O texto está estruturado a partir das seguintes perguntas essenciais:
Para a análise do contexto de um trabalho de doutorado, é preciso compreender sua essência, que é a tese que ele defende. Assim, parte-se desse ponto. A tese defendida na pesquisa de doutorado é a de que:
A pesquisa tem ênfase em tarefas de computação por humanos (human computation). Essas tarefas são comuns em sistemas como reCAPTCHA, Amazon Mechanical Turk e Zooniverse. O estudo enfatiza atividades que fazem parte de projetos científicos, nos quais voluntários participam executando tarefas cognitivas necessárias à obtenção de um resultado científico. Esses projetos são analisados em um enquadramento interdisciplinar que inter-relaciona as áreas de Ciência da Computação, Psicologia e Sociologia. O objeto de estudo é a cognição e o comportamento humano, de modo individual e coletivo, dentro do contexto de um sistema computacional. Por essa ênfase, o trabalho apresenta contribuições nos campos de engajamento, credibilidade e replicação de tarefas em sistemas de computação distribuída. As contribuições são discutidas a seguir.
A pesquisa propõe métricas para medir o engajamento dos voluntários que atuam nos projetos: 1) taxa de atividade; 2) duração relativa da atividade; 3) tempo dedicado diariamente; e 4) variação na periodicidade. Engajamento humano refere-se ao padrão de participação dos indivíduos que se voluntariam para executar tarefas cognitivas em sistemas de computação. Também é proposto um método de descoberta de perfis, por meio do agrupamento (clustering) dos voluntários a partir dos valores das métricas. O emprego dessas métricas e métodos em projetos reais revela a existência de duas classes principais de oferta de poder cognitivo: transientes e regulares. Os voluntários que apresentam engajamento regular subdividem-se em cinco perfis distintos: empenhados, espasmódicos, persistentes, duradouros e moderados. Essa contribuição e seus resultados constituem extensões importantes de dois trabalhos clássicos da literatura sobre engajamento e voluntariado: What is User Engagement? A Conceptual Framework for Defining User Engagement with Technology e Volunteering.
Credibilidade do ser humano refere-se ao grau de confiança que pode ser atribuído às respostas fornecidas por participantes humanos em tarefas cognitivas.A pesquisa propõe métricas para medir a credibilidade na execução desse tipo de tarefa: 1) superficial; 2) experimentada; 3) presumida; e 4) reputada. Cada métrica representa um indicador distinto do grau de confiança que se pode atribuir à resposta fornecida por uma pessoa. As métricas são aplicadas em projetos reais, e os resultados demonstram que a credibilidade varia de acordo com a métrica utilizada. Além disso, em tarefas não factuais, a credibilidade humana apresenta correlação negativa com a dificuldade das tarefas. Essa contribuição foi desenvolvida a partir de dois trabalhos clássicos da literatura sobre credibilidade: Believe It or Not: Factors Influencing Credibility on the Web e Credibility: A Multidisciplinary Framework.
Replicação adaptativa de tarefas é uma estratégia que ajusta dinamicamente o número de vezes que uma tarefa é replicada. Na proposta de tese, esse ajuste é feito considerando a credibilidade dos participantes e a dificuldade da tarefa.Por fim, a pesquisa propõe um algoritmo de replicação de tarefas. Esse algoritmo considera a credibilidade das pessoas e a dificuldade das tarefas ao definir o nível de redundância a ser utilizado em cada caso. Os resultados de sua aplicação com dados reais mostram que ele utiliza recursos humanos (poder cognitivo) de forma mais eficiente do que as abordagens fixas tradicionais, reduzindo a redundância desnecessária. Essa abordagem também facilita a identificação de tarefas sem conclusão, ou seja, aquelas que não atingiram o limiar de credibilidade, independentemente do nível de redundância. Isso ocorre em tarefas tão difíceis que pessoas leigas não convergem para uma única resposta. Essa identificação permite que os usuários direcionem atenção especializada para esse tipo de tarefa. O principal estudo em que essa contribuição se baseia é o artigo Sabotage-Tolerance Mechanisms for Volunteer Computing Systems.
No final da década de 2000, a área de computação por humanos (human computation) começava a ganhar destaque. O primeiro workshop dedicado ao tema, em 2009, mostrou o potencial de sistemas como o reCAPTCHA e o Amazon Mechanical Turk. Poucos anos depois, artigos de referência, como o clássico artigo intitulado Human Computation: A Survey and Taxonomy of a Growing Field, consolidaram o campo e despertaram o interesse de pesquisadores em várias partes do mundo.
No Brasil, ainda não havia grupos de pesquisa atuando diretamente nesse domínio. Foi nesse cenário que o Laboratório de Sistemas Distribuídos (LSD/UFCG) iniciou seus primeiros projetos relacionados, com a liderança de professores que já tinham experiência em sistemas distribuídos. Esse ambiente foi decisivo para que a proposta de doutorado surgisse e encontrasse espaço para ser aprofundada.
O estudo analisa a computação por humanos sob uma perspectiva de sistemas distribuídos, alinhando-se à expertise do LSD/UFCG. Essa decisão decorreu de experiências de pesquisa anteriores. Mostrava-se mais fácil situar a pesquisa nessa perspectiva do que em uma abordagem puramente da Psicologia ou da Sociologia. O primeiro desafio da pesquisa de doutorado foi elaborar essa perspectiva. O resultado desse esforço foi a revisão da literatura que faz uma leitura da área de computação por humanos na perspectiva de sistemas distribuídos. Essa revisão consolidou tal perspectiva e norteou as demais dimensões de análise tratadas na tese. A seguir, discute-se o contexto em que cada dimensão surgiu.
A dimensão do engajamento humano trata da oferta de poder computacional ao sistema de computação por humanos. Ela foi construída a partir da inspiração na oferta de poder computacional de máquinas em sistemas como a computação voluntária (volunteer computing) e as grades computacionais oportunistas. O primeiro artigo sobre engajamento, publicado como parte do trabalho de doutorado, identifica distribuições de probabilidades de participação das pessoas que oferecem poder cognitivo nesses sistemas. Essa análise foi fortemente inspirada nas modelagens de distribuição de probabilidade para a disponibilidade de recursos em sistemas como as grades computacionais. Posteriormente, a descoberta de perfis de engajamento buscou identificar os modelos típicos de oferta de poder cognitivo. A inspiração para isso veio de estudos de padrões comportamentais em sistemas cooperativos, como a Wikipedia e projetos de código aberto.
A necessidade de estudos na dimensão da credibilidade humana emergiu da constatação de que a mera participação dos indivíduos não garantia a confiabilidade dos resultados obtidos nos projetos. Ou seja, não bastava o estudo do engajamento. As pesquisas nessa dimensão de credibilidade foram fortemente inspiradas em trabalhos anteriores sobre tolerância a falhas e tolerância a sabotagens em sistemas computacionais formados por computadores digitais, áreas em que o orientador, professor Francisco Brasileiro, tinha ampla experiência. No entanto, foi necessário recorrer à Teoria do Erro Humano e à Teoria da Racionalidade Limitada para explicar a variação de credibilidade das pessoas nesses novos sistemas computacionais, nos quais tarefas cognitivas são executadas por seres humanos. A necessidade de um algoritmo de replicação emergiu da constatação de que grande parte da contribuição das pessoas era gasta em redundância para detectar erros, representando um grande desperdício do poder cognitivo ofertado. O algoritmo foi proposto para otimizar o uso desse poder cognitivo.
Aqui são detalhados os projetos que forneceram dados empíricos fundamentais para a pesquisa. São abordados projetos internacionais de ciência cidadã, iniciativas brasileiras e plataformas comerciais de trabalho online. Ao longo dos 4 anos de desenvolvimento da pesquisa, vários projetos parceiros permitiram a coleta de dados que se mostraram essenciais para o estudo. Abaixo são discutidos os principais projetos, são eles: Zooniverse, Socientize, Memória Brasil e Mercados de Trabalho Online.
Os projetos Galaxy Zoo, The Milky Way Project, Socientize e Memória Brasil se enquadram em ciência cidadã. Ciência cidadã é um movimento que preconiza uma maior participação das pessoas em geral em pesquisa científica. É chamado de a ciência de todos, por todos e para todos. A participação das pessoas em pesquisa científica pode se dar de diversas formas, da concepção da pesquisa à análise dos resultados. Esses projetos tratam da participação das pessoas pela execução de tarefas cognitivas que são necessárias para se obter um resultado científico. Os projetos Galaxy Zoo, The Milky Way Project e Socientize foram pioneiros no mundo nesse domínio. O projeto Memória Brasil do IPEA foi pioneiro em iniciativas de ciência cidadã no Brasil.A análise desses projetos mostra que uma pesquisa de doutorado não ocorre de forma isolada. Ela se desenvolve em interface com outras iniciativas científicas e tecnológicas, públicas e privadas, comerciais e não comerciais. Embora a pesquisa não precise ser totalmente de natureza aplicada, as interfaces a mantêm próxima da realidade concreta do objeto a que ela se refere. Assim ocorre, por exemplo, no estudo da computação por humanos não apenas como algo teórico, mas também aplicado a sistemas de computação, à ciência cidadã, a mercados de trabalho online e a iniciativas comerciais. Para construir essas interfaces, o laboratório de pesquisa, a universidade e o orientador são cruciais.
A iniciativa de comunicação científica, voltada à divulgação de resultados entre cientistas, consistiu basicamente na publicação de artigos e na apresentação de trabalhos em conferências. Quanto a estas apresentações, foram divulgados resultados em eventos como: dados sobre a redundância de tarefas, apresentados no lightning talk do HCOMP 2013; resultados sobre a credibilidade de voluntários, apresentados em pôster no HCOMP 2013; análises sobre o engajamento de cidadãos, apresentadas no lightning talk do IEEE eScience 2014; e a estratégia de replicação adaptativa, apresentada no SBRC 2014. Os artigos publicados são listados na próxima seção.
Buscou-se iniciativas de divulgação científica, que são direcionadas a pessoas leigas ou que atuam em outras áreas do conhecimento. À época, o LSD/UFCG mantinha um blog chamado Pensadouro LSD, no qual vários textos sobre o trabalho de doutorado foram veiculados em 2014, incluindo o intitulado Qual a Relação entre Computação por Humanos e Sistemas Distribuídos? e o texto Contribuição de Voluntários em Projetos Científicos que Utilizam Computação por Humanos. A área também foi divulgada a estudantes de graduação, como no texto Computação por Humanos, publicado em 2012 no jornal PET News, da Computação UFCG.
Após a defesa, outros esforços de divulgação científica se seguiram. Em 2018, o texto Perspectivas em Computação Social foi publicado na revista Computação Brasil; o texto A Ciência Cidadã no Brasil foi publicado no jornal Estado de Minas; e a entrevista "Ciência Cidadã" foi gravada no programa Horizonte Notícias Entrevista, da TV Horizonte. Mais recentemente, durante a pandemia de COVID-19, houve a participação no esforço para o livro Dossiê Contra o Negacionismo da Ciência: A Importância do Conhecimento Científico, publicado em 2022 pela Editora PUC Minas. O livro busca destacar a importância do conhecimento científico em meio a uma onda de obscurantismo e negacionismo que crescia naquele contexto tão desafiador. A contribuição foi o capítulo A Participação Popular nas Ciências Exatas e Informática e seus Efeitos no Conhecimento Científico e Tecnológico, que busca ressaltar a importância da participação popular na ciência como forma de compreensão do conhecimento científico e domínio do método científico.
Avaliar o impacto de trabalhos científicos é sempre desafiador. Dez anos depois da defesa, é possível analisar alguns indicadores associados à atenção recebida pelos artigos publicados durante a pesquisa. A tabela a seguir resume esses trabalhos, destacando uma análise quantitativa do número de citações e uma análise qualitativa das contribuições que foram mais aproveitadas por outros pesquisadores.
| Título | Veículo | Ano | Acesso | Citações* | Impacto e Citações |
|---|---|---|---|---|---|
| Agreement-based Credibility Assessment and Task Replication in Human Computation Systems | Future Generation Computer Systems | 2018** | Pago | 10 |
Os artigos destacam a operacionalização proposta que faz a inclusão do ser humano como um componente do sistema distribuído. |
| Finding Volunteers' Engagement Profiles in Human Computation for Citizen Science Projects | Human Computation journal | 2014 | Aberto | 134 |
Os artigos citam as métricas de engajamento, o método de descoberta dos perfis usando clustering, os perfis descobertos. Dezenas de artigos apresentam uma replicação do método de descoberta de perfil em outros projetos.
Semantic Scholar*** identificou 12 artigos que foram muito influenciados por essa publicação (outubro/2025) - artigos que replicam o método proposto.
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| Volunteers' Engagement in Human Computation for Astronomy Projects | Computing in Science & Engineering | 2014 | Pago | 74 |
Os artigos mencionam o resultado de que a maior parte das pessoas contribui nos projetos em apenas um dia e nunca mais voltam, mostrando que participação dos voluntários em ciência cidadã e computação por humanos é mais temporária (transiente) do que se imaginava.
Semantic Scholar*** identificou 4 artigos que foram muito influenciados por essa publicação (outubro/2025) - artigos que reusam as métricas de engajamento propostas.
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| Considering Human Aspects on Strategies for Designing and Managing Distributed Human Computation | Journal of Internet Services and Applications | 2014 | Aberto | 40 |
Os artigos citam o framework conceitual que integra fatores humanos, requisitos de qualidade de serviço (QoS) e estratégias de design e gerência de sistemas. Artigos também citam alguns dos aspectos humanos (ou toda a lista) que é apresentada no trabalho. |
| Adaptive Task Replication Strategy for Human Computation | Simpósio Brasileiro de Redes de Computadores e Sistemas Distribuídos | 2014 | Pago | 3 |
Os artigos citam o processo de replicação em computação por humanos. |
| Task Redundancy Strategy based on Volunteers' Credibility for Volunteer Thinking Projects | AAAI Conference on Human Computation and Crowdsourcing | 2013 | Aberto | 5 |
Os artigos citam o conceito de redundância para atingir qualidade em tarefas executadas por seres humanos. |
* O número de citações é soma das citações no Google Scholar + Google Books como em 31 de outubro de 2025.
** Artigo publicado em 2018, mas desenvolvido durante o doutorado.
*** O Semantic Scholar identifica artigos em que a publicação citada tem um impacto significativo. Citações influentes são determinadas utilizando um modelo de aprendizado de máquina que analisa uma série de características.
Essa análise evidencia que algumas contribuições, como as métricas de engajamento e o método de descoberta de perfis de engajamento, foram mais replicadas e utilizadas por outros pesquisadores ao longo dos últimos anos. Também há grande diferença no nível de atenção que cada artigo tem recebido da comunidade científica, receberam mais atenção os trabalhos que tiveram a ciência cidadã como o enquadramento principal. Há vários componentes que podem explicar esse resultado. Não se trata apenas da qualidade dos resultados e contribuições do trabalho, mas também do nível de atividade de pesquisa na área tratada no trabalho. Alguns anos após o término das pesquisas de doutorado, houve uma redução da quantidade de pesquisas em computação por humanos, enquanto a área de Ciência Cidadã ainda continua se expandindo até os dias atuais.
Durante esses 10 anos que se seguiram à defesa do doutorado, ocorreram diversas atividades relevantes de serem mencionadas. Elas foram impulsionadas pelo conhecimento e pela experiência acumulados durante a condução da pesquisa. Algumas dessas atividades são discutidas abaixo.
Nos anos que seguiram à defesa, ministrei várias palestras sobre ciência participativa e cidadã. Uma observação recorrente nessas palestras é o quanto as pessoas gostam e se fascinam pela ciência quando são mais jovens e, depois de alguns anos, a maioria acaba se distanciando. Quase todas têm a recordação de algum experimento interessante que fizeram na escola, como plantar feijão em diferentes recipientes com água e algodão. Mas poucos cursos de informática oferecem a lembrança de algum experimento marcante na universidade — algo que seja, ao mesmo tempo, lúdico, surpreendente e revelador. Durante muito tempo, isso despertou meu interesse em engajar mais os estudantes de graduação em pesquisa científica. Incluí artigos científicos nas disciplinas que leciono, escolhi ministrar conteúdos associados à pesquisa em informática que envolvem replicação e reprodução de estudos científicos e assumi funções de coordenação de pesquisa. Ações de aproximação dos estudantes da ciência na sua área de atuação.Após 2015, a área de ciência cidadã cresceu muito em todo o mundo. Houve o surgimento da Citizen Science Association (recentemente renomeada para Association for Advancing Participatory Sciences – AAPS), da qual fui membro por vários anos. No Brasil, em 2017, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) organizou o primeiro Workshop de Ciência Cidadã do SIBBr, do qual participei. Em 2019, nasceu a Red Iberoamericana de Ciencia Participativa (RICAP), da qual sou um dos fundadores, junto com outros 18 pesquisadores da região. Mais recentemente, em 2022, foi lançada a Civis: Plataforma de Ciência Cidadã, uma iniciativa do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), que tive o prazer de acompanhar desde o início.
No campo científico, a atividade de maior impacto após o doutorado foi a participação no artigo Citizen Science Terminology Matters: Exploring Key Terms, publicado em 2017. Esse foi um esforço de 23 pesquisadores de todo o mundo, do qual fui o único pesquisador brasileiro. O trabalho foi liderado por M. V. Eitzel, da University of California, Davis, e é uma importante contribuição sobre o significado do movimento de “ciência cidadã” e da participação das pessoas nesse movimento. Trata-se de um estudo muito influente na área, que já recebeu mais de 900 citações em outros trabalhos acadêmicos e científicos. Outro resultado relevante é o artigo Characterising Volunteers' Task Execution Patterns Across Projects on Multi-Project Citizen Science Platforms, publicado em 2019 com Thiago Emmanuel. Esse trabalho tem se mostrado útil para pesquisadores que desejam compreender se, e como, os participantes atuam em plataformas com múltiplos projetos de ciência cidadã. Em 2020, também ocorreu outra colaboração importante, que é o mapeamento Citizen Science from the Iberoamerican Perspective: an Overview, and Insights by the RICAP Network. Esse trabalho foi liderado por Natalia Piland, que, à época, estava na Universidade de Chicago. Ele contou com a participação de 12 pesquisadores da região ibero-americana, em intensas discussões e análises de dados. Ele buscou mapear iniciativas de ciência cidadã nessa região.
Mais recentemente, em novembro de 2024, ministrei, junto com a professora Sarita Albagli (Ibict e UFRJ), palestras na Citizen Science Masterclass, promovida pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), das Organizações das Nações Unidas (ONU), e pela Association of European Research Libraries (LIBER). Minha fala abordou o tópico Construindo Capacidade em Ciência Cidadã: Dados, Informações e Conhecimentos na Construção e Partilha do Saber.
Há várias outras atividades que ocorreram após a defesa do doutorado, que não se relacionam diretamente com os tópicos pesquisados no doutorado, mas que só aconteceram (ou foram facilitadas) em razão da condição de doutor. Isso inclui atividades profissionais como professor de cursos de graduação em Sistemas de Informação e Engenharia de Software, participação em bancas de defesa de mestrado, condução de projetos de pesquisa, além de um período de pós-doutorado.
Resumir a experiência do doutorado não é simples. Dez anos após a defesa, destaco um desafio e uma satisfação que ainda me marcam — e com os quais acredito que muitas outras pessoas possam se identificar.
O principal desafio foi a mudança radical de área em relação ao mestrado. Enquanto o mestrado tratou de economia de energia em sistemas distribuídos, envolvendo as áreas de Engenharia Elétrica, Arquitetura de Computadores e Sistemas Operacionais, o doutorado voltou-se ao comportamento humano em computação por humanos, envolvendo as áreas de Interação Humano-Computador, Psicologia e Sociologia. Em um ano eu estudava frequência de processadores; no seguinte, motivação para o voluntariado. Essa transição exigiu reaprender métodos e conceitos.
O desafio da pesquisa interdisciplinar e a satisfação de acompanhar a literatura ao longo do tempo me trouxeram muitos aprendizados. Um desses aprendizados foi a descoberta e o meu interesse pelos estudos na área do voluntariado (volunteering). Para a tese e os artigos decorrentes dela, foram articulados os conceitos de volunteering versus helping behavior, comuns na sociologia. Esses conceitos ajudaram a explicar que o que a maior parte das pessoas faz em ciência cidadã baseada em computação por humanos não se caracteriza como voluntariado permanente, mas apenas como uma ajuda esporádica. Acompanhei essa literatura ao longo dos últimos anos, e muitos novos conceitos importantes foram se desenvolvendo, alinhando-se às discussões apresentadas na tese — entre eles microvolunteering e spontaneous volunteering. É uma literatura fascinante.Escrever artigos que têm grande interseção com áreas como Sociologia e Psicologia, sendo alguém com formação em Ciência da Computação, foi especialmente difícil. A curva de aprendizado foi longa. Embora a interdisciplinaridade seja muito preconizada, o trabalho interdisciplinar é, muitas vezes, visto como um “patinho feio”. Isso ficou claro no artigo Considering Human Aspects on Strategies for Designing and Managing Distributed Human Computation, rejeitado várias vezes antes de ser publicado. Ainda assim, considero-o um dos trabalhos mais importantes da minha trajetória, justamente pelo arcabouço conceitual que propõe. É necessário muito esforço e persistência para achar o ponto que equilibre as diversas disciplinas que compõem um trabalho interdisciplinar.
Apesar das dificuldades, essa travessia ampliou minha visão. Na docência, percebi que consigo transitar com segurança desde o nível mais baixo do hardware (Arquitetura, Sistemas Operacionais) até o mais alto da interação com pessoas (Interação Humano-Computador). O esforço valeu por me dar uma compreensão mais completa do sistema computacional, do hardware ao ser humano.
A principal satisfação foi acompanhar, ao longo de quatro anos, a evolução das áreas de computação por humanos e ciência cidadã: comunidades se organizando, periódicos e conferências surgindo, publicações discretas tornando-se referências. Esse acompanhamento contínuo me ensinou a valorizar não só os novos trabalhos, mas também como dialogam com pesquisas anteriores. Ver a repercussão de um artigo após sua publicação é algo que me motiva até hoje.
Outro ganho de acompanhar a área diariamente ao longo de quatro anos foi a interação com colegas durante o doutorado. Tivemos, por exemplo, conversas com vários pesquisadores que utilizaram resultados do artigo Finding Volunteers' Engagement Profiles in Human Computation for Citizen Science Projects. Esse diálogo gerou uma retroalimentação valiosa, ajudando a refinar análises e a abrir novas investigações ainda durante o doutorado. Essa troca é, para mim, algo bastante satisfatório e um dos maiores sinais de relevância daquilo que se está estudando.
A pesquisa em computação por humanos sempre coloca a necessidade de uma análise temporal: de como os computadores eram, como evoluíram e como serão. No início do doutorado, em 2012, para compreender por que havia tarefas que as máquinas não eram capazes de executar, foi necessário entender como, a partir de 1950, determinadas tarefas que eram feitas por seres humanos passaram a ser realizadas por máquinas. Foi necessário compreender como o termo computador deixou de designar a profissão de um ser humano e passou a designar uma máquina. Só depois disso foi possível compreender o escopo que ainda cabia à computação por humanos, mais de 60 anos após a criação dos primeiros computadores digitais. Isso encontra-se descrito principalmente no Apêndice A: Computação Antes dos Computadores Digitais. Segue a transcrição do segundo e último parágrafo desse apêndice.
O uso do poder cognitivo de seres humanos para realizar computações não é um conceito novo. O termo “computador”, que atualmente é utilizado para designar máquinas de computar, até a primeira metade do século XX era usado para designar seres humanos que tinham como atividade profissional realizar computações (CERUZZI, 1991; GRIER, 2007). Computadores eram seres humanos que trabalhavam fazendo cálculos matemáticos. Os relatos mais antigos dessa atividade remontam ao século XVI. Ela pode ser analisada considerando dois períodos históricos. No primeiro período, computação por humanos era uma atividade de baixa escala, realizada em pequenas equipes. No segundo período há uma expansão na demanda de computação, o que motiva o surgimento de grandes organizações dedicadas a essa atividade.
Essa primeira fase de computação por humanos deixou um importante legado para o que veio a se tornar a Ciência da Computação. A organização das fábricas de computar, os padrões de erros observados e os mecanismos desenvolvidos para identificar e tratar esses erros inspiraram Charles Babbage (1791-1871) na proposta da primeira máquina de calcular (Difference Engine) por volta de 1822. O próprio conceito de “computação” definido por Alan Turing (1912-1954) é inspirado na forma como os computadores humanos realizavam as computações (TURING, 1950).
Agora, em 2025, o debate é muito parecido. As novas tecnologias de inteligência artificial estão tornando os computadores capazes de realizar tarefas que, até 3 ou 4 anos atrás, apenas seres humanos eram capazes de executar. Novamente, nós estamos nos questionando sobre qual é o conjunto de tarefas, competências e habilidades que são inerentes ao ser humano e que, portanto, sistemas computacionais digitais não conseguem realizar com qualidade equivalente. Agora, como antes, será preciso reposicionar o papel que o ser humano e os computadores digitais têm no espectro de tarefas computacionais.
A análise histórica deixa claro que a tradição de estudos em computação por humanos é longa e precede o surgimento dos computadores digitais. Essa tradição moldou a própria noção de computação e se reinventa a cada geração tecnológica. A relevância estrutural está no problema central tratado pela área, que é: como integrar a cognição humana em sistemas sociotécnicos? Hoje, esse problema reaparece em debates sobre human-in-the-loop, curadoria de dados, moderação de conteúdo e validação de saídas de modelos de inteligência artificial generativa.
Algo que me interessa nesse contexto, e que aponta para oportunidades futuras, é que a inteligência artificial, na medida em que se torna capaz de realizar tarefas que antes eram desempenhadas apenas por seres humanos, também se torna mais suscetível a problemas aos quais somente os seres humanos eram suscetíveis. Isso inclui diversos tipos de vieses, erros de generalização e a falta de contexto suficiente. Assim sendo, a ampla literatura sobre como lidar com essas situações na execução de tarefas por seres humanos pode ter grande valor ao lidar com tarefas executadas por agentes de inteligência artificial ou no trabalho cooperativo deles com seres humanos.
Sobre estudos na área de engajamento, surgiram diversas abordagens e contextos de pesquisa. Por exemplo, a análise de situações em que um alto engajamento é sinal de vício, como em jogos, ou de burnout em sistemas de teletrabalho (home office). O estudo mais recente que realizei nesse domínio foi publicado em 2023 e trata do engajamento dos cidadãos no contexto de ações climáticas de preparação e adaptação para eventos climáticos extremos. O estudo de credibilidade tem ganhado importância no contexto de detecção de notícias falsas, na análise de pessoas que fornecem informações que envenenam modelos de inteligência artificial e na análise de resultados produzidos por inteligência artificial. Como mecanismo essencial de sistemas de computação distribuída, a replicação de tarefas continua sendo estudada como estratégia para obtenção de eficiência e tolerância a falhas. Em resumo, essas áreas têm alta resiliência a mudanças de contexto e continuam em grande atividade científica.
Obrigado por chegar até aqui. Este texto foi escrito como reflexão e memorial. Para além das discussões técnicas, talvez a lição mais ampla que permanece seja a de que a ciência é feita de pessoas, encontros e atravessamentos. Dez anos depois, acredito ainda mais que cada trajetória, com seus desvios e descobertas, pode inspirar outras a se aventurarem pelo desconhecido. Assim como as áreas de pesquisa, as pessoas evoluem quando constroem a partir da cadeia de eventos e aprendizados anteriores que as conectam — uma rede viva que sustenta o conhecimento e o impulsiona adiante.
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