Alguns casos de definição de área e questão de pesquisa científica

Lesandro Ponciano ORCID iD

10 de novembro de 2024

A internet está cheia de dicas sobre como um estudante ou pesquisador pode escolher um tema ou área para sua pesquisa científica. Apesar de haver várias dicas relevantes, a validade delas varia muito com o contexto em que a pessoa se encontra. Enquanto estudante, a área de pesquisa e questões de pesquisa são muito influenciadas pelo professor orientador da pesquisa. O pesquisador enfrenta mais desafios nessa tarefa alguns anos após o doutorado, quando as questões de pesquisa da área em que atuou já estão muito exploradas e suas pesquisas não são mais guiadas pelo seu ex-orientador. Nessa situação, será necessário traçar um novo caminho por ele mesmo.

Eu já me encontrei em todos esses contextos, mas neste texto estou interessado no caso do estudante. Em particular, as reflexões desse texto são mais pertinentes ao contexto do estudante em nível de mestrado. Nesse nível, há definições de orientadores, mas também há espaço para escolhas do estudante. Esse é o momento em que talvez o pesquisador em formação desenvolve a habilidade de escolher. Muitas vezes ele não identifica todas as alternativas, mas precisa escolher entre as que são colocadas para ele.

Primeiro, vou discutir algumas dicas baseadas na experiência de bons pesquisadores: Donald Knuth e Arthur Ávila. Depois disso, vou contar o caso do meu trabalho de mestrado, quais escolhas precisei fazer para chegar aos trabalhos que fiz e o que aprendi com essas escolhas.

Problemas relevantes

Donald Knuth, pesquisador na vanguarda da Ciência da Computação, em "My advice to young people” (93/97) disse "Muitas vezes eu tenho que ler muito material, apenas para escrever uma frase." É preciso ler muito, ganhar contexto amplo da área, explorá-la em sua extensão e profundidade para, em algum momento, extrair uma ideia. Talvez esse seja o processo mais natural para um pesquisador: acompanhar os estudos na sua área de atuação e identificar os problemas que ainda estão para ser resolvidos. Donald Knuth também alerta: "Não acredite apenas que porque algo está na moda é bom". Esse é um alerta importante, principalmente na Ciência da Computação. Há muita influência tecnológica nessa área. Porém, tecnologias mudam muito e um trabalho muito acoplado a uma tecnologia da moda pode se tornar irrelevante rapidamente, quando a tecnologia da moda mudar.

Arthur Ávila, ganhador da medalha Fields, em resposta dada em entrevista à Revista FAPESP em 2014, disse:

Trabalho em coisas que me agradam, com problemas que me interessam particularmente, que considero bonitos. Frequentemente os problemas considerados difíceis são fundamentais porque têm algo de grande interesse. Em torno desses problemas também se desenvolvem teorias. O matemático é, em geral, atraído pela riqueza da teoria em torno desses objetos. Trabalhar com esses problemas permite explorar coisas mais prazerosas. Mas não descarto um problema porque outras pessoas não o consideram importante. Trabalhei também com questões que sabia que não teriam impacto monumental. Esses problemas, quando são mais simples, resolvo mais rápido.

Destaco dois pontos nessa fala. Primeiro, o pesquisador precisa gostar, se interessar e achar bonita a área e os problemas que se dispõe a estudar. Segundo, geralmente os problemas que são relevantes, que têm grande impacto, são os mais desafiadores.

O caso de um trabalho de mestrado

Meu objetivo ao contar a história abaixo é explicar que o processo de escolha de tópicos de pesquisa muitas vezes não é linear. Várias variáveis contribuem para que se chegue a um tema. Não nasce de geração espontânea. É um processo evolutivo.

No início do meu mestrado na UFCG, em 2009, eu não tinha clareza sobre o que poderia pesquisar. Eu havia trabalhado com caracterização de carga de trabalho e escalonamento de processos em arquiteturas paralelas durante a graduação, então, essas eram as possibilidades que eu tinha. Os primeiros meses de mestrado foram para estudar conteúdos gerais da área. Simultaneamente, eu estava alocado no Laboratório de Sistemas Distribuídos. O laboratório era referência em Grid Computing (Computação em Grade) e grande parte das pesquisas eram nesse contexto. Eu via constantemente defesas de mestrado e doutorado. Na biblioteca do laboratório, tínhamos diversas dissertações e teses de estudantes anteriores. Li quase todas.

O primeiro tema que me foi colocado para pesquisa de mestrado foi bem no contexto de Redes de Computadores. A ideia era fazer um tunneling para que tarefas que executavam dentro do sandbox de máquinas virtuais da grade pudessem acessar a internet sem realizar um ataque. Era engraçado porque a discussão era do problema e já da solução. Então, fiquei com a sensação de que havia pouco a ser feito e discutir além de implementar aquilo. Mas fiquei estudando o assunto.

Na mesma época, eu estava cursando a unidade curricular de Sistemas Distribuídos. Para essa unidade curricular, precisaríamos propor um projeto e executar a pesquisa. Cada equipe trabalhou em um tema. Os temas dos projetos foram dados pelo professor da disciplina. Minha equipe tinha quatro membros, Jaindson, Marcus, Matheus e eu. Nosso tema era Green Grid ou Grade Verde. A apresentação do nosso projeto foi um tanto caótica, todos os quatro falando. Ficou confuso. O trabalho foi muito criticado. A partir disso, decidi contribuir dando uma estrutura geral para o que queríamos fazer e dividindo as tarefas. Por exemplo, Jaindson implementou o simulador. Matheus ajudou na análise da base de dados. Marcus fez grande parte das análises estatísticas. Eu atuei em todas essas partes, escrevi e apresentei o trabalho. A apresentação foi considerada boa. O resultado disso está no artigo “Análise de Estratégias de Computação Verde em Grades Computacionais Oportunistas”, que ao ser premiado na conferência SBRC 2010 foi estendido para o artigo “Usando as estratégias sobreaviso e hibernação para economizar energia em grades computacionais oportunistas” publicado na Revista Brasileira de Redes de Computadores e Sistemas Distribuídos (RB-RESD) em 2011.

Essa pesquisa me marcou e impactou o meu percurso no mestrado. Como os demais colegas já tinham tema para mestrado, eu optei por seguir nessa linha de pesquisa (abandonando aquela sugestão que recebi sobre tunneling).

Eu tratava a área de Green Grid na perspectiva ambiental. Ou seja, economizar energia reduz a necessidade de produção de energia, que reduz os impactos ambientais. Durante a defesa do projeto de mestrado, uma professora sugeriu que eu deveria tratar de dinheiro. Ou seja, o fato de economizar energia deveria ter como benefício reduzir custos e, algumas vezes, aumentar o lucro. Essa era uma abordagem muito comum na época. Havia uma área chamada Business-Driven IT Management (BDIN), que era basicamente pensar a gerência de TI focada em objetivos de negócio. Mas eu preferi manter a motivação ambiental como principal..

Ao desenvolver mais a pesquisa durante o mestrado, eu me vali de um conhecimento que eu adquiri na época da graduação, que é o escalonamento de tarefas. Grande parte do que fiz durante o mestrado foi estudar como o escalonador de tarefas da grade poderia ser melhorado para usar as máquinas que levariam a menor consumo de energia da grade como um todo. Foi uma boa abordagem, que produziu resultados e discussões interessantes. Com isso, defendi a dissertação "Avaliação do impacto de estratégias de economia de energia em grades computacionais entre-pares" e publiquei os artigos "Assessing green strategies in peer-to-peer opportunistic grids" e "On the impact of energy-saving strategies in opportunistic grids" no contexto dessa pesquisa.

Esses trabalhos foram em Grid Computing e, mais especificamente, Opportunistic Grids, não porque estavam na moda, mas porque eram tecnologias importantes e estava claro que poderiam ser melhoradas. Atualmente, essas tecnologias estão em desuso. O mais próximo que temos hoje são as infraestruturas de computação na nuvem. Felizmente, as estratégias que empregamos para buscar a economia de energia são independentes da tecnologia de grade. As técnicas de escalonamento, estados de dormência e temporizadores são muito utilizadas em sistemas computacionais atuais e, por isso, a contribuição dada nesses trabalhos ainda persiste.

Embora eu tenha continuado a acompanhar o tema da sustentabilidade, eu só fiz um trabalho no contexto de economia de energia após o mestrado. Trata-se do artigo “Energy Efficient Computing through Productivity-Aware Frequency Scaling”, trabalho que fiz com Lívia Sampaio, Andrey Brito e Francisco Brasileiro. Esse foi um “projeto paralelo” que fizemos apenas por interesse pessoal. Ele não estava no contexto de um trabalho de mestrado ou doutorado. O doutorado e pesquisas posteriores seguiram outros rumos e são outras histórias.

Essa reflexão permite observar que a escolha de tema e área envolve muitas variáveis. O que se estuda no local em que você está, o que seus colegas estão estudando e o que você lê tem grande efeito sobre suas opções e escolhas. A definição de uma área, tema ou problema ocorre em um processo incremental e evolutivo. Para que essa evolução ocorra com sucesso, em alguns momentos, escolhas precisam ser feitas (como abandonar uma ideia anterior e optar por uma motivação em detrimento de outra) e conhecimentos e experiências prévias precisam ser utilizados (como empregar uma técnica/método que você aprendeu em projeto anterior). Mas creio que a evolução só é possível se houver uma imersão no contexto. Do contrário, podem faltar informações, experiências, conhecimentos e, portanto, não haverá elementos para a evolução saudável das ideias.

Há um último fator que acho importante mencionar: a dor. Quando se faz uma escolha e o caminho escolhido se mostra doloroso e nada prazeroso, há algo errado. Não estou dizendo que precisa ser fácil. Problemas podem ser difíceis e prazerosos (lembre-se da fala de Arthur Ávila reproduzida acima). O que estou dizendo é que não é possível fazer uma boa pesquisa sem gostar dela. Não conheço e nunca ouvi falar de um pesquisador que tenha feito progresso importante em um tema ou problema que ele odiava.

Em pesquisa é sempre importante ter tranquilidade. Muitas vezes os estudantes me pedem informações sobre mestrado. Quase sempre, eles estão ansiosos achando que, desde o início, precisam já ter um "tema", já saber tudo da área na qual pretendem trabalhar, que já precisam ter publicado artigos nesta área, etc. Não é bem assim que acontece. Conhecimento e experiência são sempre importantes. Mas está tudo bem aprender e evoluir ao longo do processo - esse é o caminho natural. Então, tranquilidade é essencial.

Observação: Propositalmente, eu deixei de fora dessa discussão a influência das áreas e temas que são definidos como prioritários pelas agências de fomento. Primeiro, nem toda pesquisa precisa de financiamento de agências de fomento. Segundo, acredito ser um erro definir o tema ou área de estudo baseado no que é financiável. Acredito ser correto fazer essa escolha baseado no julgamento de relevância e interesse do pesquisador. A ordem que eu coloco é: primeiro a relevância e o interesse do pesquisador, depois o que é prioritário para as agências de fomento.

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