Por que redes sociais como Mastodon ainda não são amplamente usadas no Brasil?

Lesandro Ponciano ORCID iD

09 de dezembro de 2024

Este texto discute o funcionamento básico das redes sociais descentralizadas e analisa os argumentos sobre por que essas redes ainda não são amplamente usadas no Brasil. Em particular, analisa-se os argumentos de que as pessoas não querem migrar da rede que já usam, de que a interface do Mastodon é difícil de usar e de que há desafios técnicos, econômicos e de governança que são barreiras à ampla adoção.

Funcionamento básico da rede Mastodon

O conceito de redes sociais descentralizadas é relativamente novo. Ele consiste em uma rede que não é composta de apenas uma unidade administrativa, como é o caso do Twitter, Facebook e Youtube. Assume-se que há um software de código aberto como o Mastodon e, a partir dele, qualquer pessoa pode criar uma nova unidade administrativa que se junta à rede. Conceitualmente, cada unidade administrativa é um nó da rede, que agrega várias pessoas que possuem interesse comum. Então a unidade administrativa, também chamada instância, é uma comunidade em si. Por exemplo, no caso do Mastodon, uma das principais unidades é mastodon.social que atualmente agrega 278 mil pessoas ativas mensalmente.

Uma unidade administrativa funciona de modo semelhante a muitas organizações sociais. Trata-se da agregação de pessoas que têm interesses comuns, como morarem em uma mesma cidade, falarem o mesmo idioma e se engajarem em um mesmo tópico, como tecnologia, meio ambiente, ciência e educação. Então, em cada unidade da rede, as pessoas têm um sentido para estarem juntas em comunidade. Essas comunidades não precisam ser isoladas, pois cada pessoa ainda pode se interconectar (seguindo, curtindo publicações e conversando) com qualquer pessoa, mesmo aquelas que se encontram registradas em outras unidades da rede.

Tecnicamente, uma unidade administrativa é um servidor que executa uma instância do software instalado e configurado. A configuração não é apenas operacional (como uso de memória, processamento, etc), mas também social. Ela é social no sentido de definir um conjunto de regras de uso que devem ser observadas pela comunidade. Por exemplo: quem pode se inscrever, tamanho máximo do texto da publicação, regras de comportamento, etc.

Além de serem autônomas e de servirem à comunidade de pessoas que elas agregam, as unidades administrativas também podem fazer parte de uma federação. A federação significa que, por meio de um protocolo computacional comum, diferentes unidades administrativas podem trocar informações. Isso permite, por exemplo, a uma pessoa registrada na unidade administrativa mastodon.social seguir qualquer pessoa que está registrada na unidade administrativa mastodon.world e curtir as publicações feitas por tais pessoas. Então, diferentes unidades são computacionalmente interligadas. Isso constitui uma grande rede de comunidades.

Teoricamente empresas, partidos políticos, universidades e Organizações Não Governamentais (ONGs) podem criar unidades administrativas para reunirem pessoas que estão a eles associados. Mas, mesmo depois de vários anos de existência de redes como Mastodon, por que elas ainda não são amplamente utilizadas? Há vários argumentos, que são hipóteses, para esse fenômeno.

O argumento de que pessoas não querem migrar de rede social

É difícil sustentar o argumento de que as redes descentralizadas não são amplamente usadas porque as pessoas preferem ficar em redes centralizadas ou em razão do custo social da migração. Tomando como exemplo o caso do Brasil e da rede social Twitter, houve várias possibilidades para o crescimento de redes como Mastodon. Bloqueio do Twitter no Brasil, a tentativa de interferência política por parte do Twitter e seu apoio a grupos extremistas são apenas uma das razões para as pessoas desejarem migrar de rede. Houve ondas de migração para o Mastodon, mas foram aparentemente pequenas no Brasil. Movimento migratório relevante no Brasil foi para redes mais centralizadas, como é o caso do Bluesky. Essa rede ganhou mais de um milhão de usuários brasileiros em três dias. Embora o Bluesky possa ser federado, ele é, em sua forma de operação, centralizado. Há uma grande unidade administrativa que reúne milhões de pessoas.

Não há evidência de crescimento notório do Mastodon nesse cenário, em que e a rede social Twitter ficou bloqueada por 39 dias. Então, é surpreendente que mesmo quando as pessoas foram forçadas a procurar uma outra rede, Mastodon não se destacou como destino para migração. Então, há outros componentes que precisam ser analisados e que estão mais associados à forma de operação do Mastodon do que ao desejo das pessoas de migrarem de rede.

O argumento de que o Mastodon é difícil de usar

Por se tratar de um software de código aberto, cada unidade administrativa pode alterar a interface do software de modo a implementar recursos de facilidade de uso. No entanto, a maior parte das unidades administrativas proeminentes usam basicamente a versão padrão do software. A interface com o usuário da versão padrão não se parece com as interfaces das redes sociais centralizadas quanto à arquitetura de informação aos nomes das funcionalidades. Isso pode ser tornar uma barreira inicial para a pessoa que deseja se juntar a uma unidade administrativa. No entanto, não é evidente que há problemas graves que impeçam de forma severa o uso desse software. Caso exista uma dificuldade, é mais provável que seja associada ao estranhamento inicial que o novo usuário tem, do que a continuidade de uso após esse estranhamento. Por outro lado, a ampla adoção do BlueSky no Brasil no período de bloqueio do Twitter é muitas vezes atribuída à semelhança da interface do Bluesky com a interface do Twitter, reduzindo a barreira inicial. Então, talvez a interface tenha efeito no não-engajamento, mas não no desengajamento.

O argumento de que a criação e manutenção de unidades administrativas requer elevado conhecimento técnico

De acordo com o site Join Mastodon, há mais de 8 mil unidades administrativas na rede Mastodon. No entanto, não é trivial criar uma nova unidade administrativa. É preciso o conhecimento técnico para fazer um clone (download) do software de código aberto, instalá-lo e mantê-lo atualizado. Acumulam-se estudos mostrando que a administração desses servidores é trabalhosa. São também comuns os exemplos de instâncias que foram descontinuadas. Então, há um componente técnico que compromete o avanço da rede por meio da criação de novas unidades administrativas. Considerando que só é possível se juntar à rede por meio de uma unidade administrativa, isso também tem um efeito na sua difusão entre o público geral.

O argumento de que as unidades administrativas não possuem sustentabilidade econômica

Não é possível manter uma unidade administrativa na rede sem custos financeiros e econômicos. É preciso manter um servidor ou uma máquina virtual. É preciso horas de serviço técnico para manter esse servidor operando, de modo atualizado e resistente a ataques. Algumas unidades administrativas adotam uma abordagem colaborativa para rateio desses custos. Algumas cobram uma contribuição mensal (que em alguns casos é opcional) para participar da unidade administrativa, enquanto outras pedem doações por meio de crowdfunding. No entanto, esse mecanismo é razoável em uma unidade consolidada, que já se encontra em operação. Para novas unidades, o investimento inicial não é desprezível. Não há a garantia de que pessoas estariam dispostas a pagar para se manterem registradas. Então, não se pode descartar o desafio da sustentabilidade econômica como inibidor da popularização desse tipo de rede social.

Isso tem efeito sobre potenciais usuários. Mesmo sabendo que eles podem migrar suas contas de uma unidade da rede para outra em caso de descontinuidade, a incerteza sobre a sustentabilidade da unidade administrativa pode ser um fator inibidor do engajamento. Há uma clara e forte sensação de instabilidade.

O argumento de que a governança e moderação de unidades administrativas é desafiadora

Em termos de governança, é preciso definir um conjunto de regras sociais, de políticas de atuação das pessoas na unidade da rede. É preciso fazer moderação de conteúdo a fim de evitar a manutenção de conteúdos que sejam contrários às regras definidas. É necessário realizar uma validação das pessoas que solicitam registro no servidor para checar se a pessoa satisfaz os requisitos para fazer parte da comunidade, se é parte do público alvo a que a unidade se destina. Há unidades que delegam o serviço de moderação para membros da comunidade. Mas esse mecanismo também é mais razoável para unidades consolidadas do que para unidades em constituição.

A governança também é um desafio para as pessoas que estão interessadas em se juntar a uma unidade da rede. Cada unidade impõe suas próprias regras de operação. Por exemplo, há unidades em que uma pessoa pode ser advertida ou banida por publicar uma imagem sem descrição de acessibilidade. Há unidades em que pode-se publicar sobre qualquer assunto, enquanto outras são monotemáticas e todas as publicações devem ser sobre um mesmo assunto. Há unidades que aceitam publicações automatizadas, enquanto outras proíbem essa prática. Não é trivial para as pessoas entenderem todas as regras peculiares das unidades, que, em muitos casos, são diferentes das redes centralizadas com as quais essas pessoas estão acostumadas. Além da dificuldade de compreensão, há o paradoxo das "regras versus prática". Muitas vezes o que se pratica não é o que está escrito. Então, a pessoa recém chegada não sabe exatamente o que vale: se é o que todos fazem ou o que está escrito.

Pelas considerações acima, pode-se ver que embora seja um modelo de rede social inovador e aderente à visão comunitária, ele enfrenta desafios que não são triviais de serem solucionados. Esses diferentes desafios técnicos, de governança, sociais e econômicos em conjunto contribuem para explicar por que redes sociais descentralizadas, como Mastodon, ainda não são amplamente usadas.

Informo ao leitor que tenho usado Mastodon por 2 anos. Já passei por quatro unidades da rede (fosstodon.org, mastodon.world, bolha.us e mastodon.social). Atualmente, encontro-me registrado na mastodon.social. O que escrevi neste texto é resultado da minha percepção como usuário da rede, como leitor de discussões no Mastodon sobre a própria rede e como leitor da literatura científica sobre o tema. 

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