Estamos defendendo um mundo velho e fadado à morte?

Lesandro Ponciano ORCID iD

09 de fevereiro de 2025

Meu caro leitor. Há momentos em que insistimos em querer que as coisas sejam como eram ou como as conhecíamos. Será que estamos defendendo um mundo que está em decadência, que está morrendo? Estamos relutantes enquanto sentimos a vertigem e as dores do nascimento inevitável de um mundo novo e desconhecido? Pensemos um pouco sobre algumas situações atuais.

A prática de leitura, que é um tópico recorrente por aqui, é a primeira em nossa análise. Há cada vez mais notícias de que as pessoas leem pouco no Brasil. Devemos defender que as pessoas leiam mais, ou deve-se tratar isso como uma "guerra perdida"? Podemos assumir que áudios e vídeos são uma nova realidade e que texto é coisa do passado? Pelas minhas observações e conversas com os mais jovens, estou convencido de que se trata não apenas de "preguiça" de ler. As pessoas reportam um nível de dificuldade de leitura que é incomparável com o que se observava há 10-20 anos. Este é apenas um exemplo de situação em que parece que estamos defendendo uma prática que pode cair em desuso.

Muitas pessoas acham que esforço é coisa do passado. Algumas vezes me pego tentando convencer os estudantes de que, para alguns tópicos complexos, é preciso sentar e fazer exercícios por horas. Nem tudo é tão simples como um meme. Um vídeo no TikTok, por mais engajante, engraçado e curto que possa ser, não permitirá compreender os mecanismos mais complexos em biologia, física, química e cálculo. Muito pelo contrário. Essa abordagem tende a enfatizar o caso mais trivial. Isso pode ser útil no início da aprendizagem, mas persistir nessa abordagem pode levar o estudante a se iludir achando que domina algo, quando na verdade ele só conhece a instância mais trivial daquilo. É um reducionismo que não é apenas academicamente ruim, ele também produz aquelas pessoas que "acreditam que sabem tudo de tudo", mas é conhecimento raso. Imagine, meu caro leitor, a dor de viver em uma sociedade em que a maioria das pessoas é assim.

Não precisa ser bem informado para concluir que há grande confusão na política, economia, educação, entretenimento. As coisas, como "costumavam ser", parecem estar desmoronando. No mundo inteiro, além de levar a política para posições extremas, os políticos são cada vez menos receosos de falar inverdades. Se no passado as pessoas tentavam não ser ignorantes, hoje a ignorância da hit (views), popularidade, poder e dinheiro. Nesse caso, não convém culpar apenas as pessoas, mas também as plataformas que fomentam esse comportamento por parte delas.

O "novo" não é necessariamente um problema. O problema surge quando algo novo é recebido e adotado revolucionariamente. Exemplo de algo novo são as Inteligências Artificiais (IAs) Generativas (como ChatGPT, Copilot, Gemini). Cada vez mais, os trabalhos dos estudantes estão sendo feitos por IAs. Não há problema em usar essas IAs sob supervisão de um professor. Após estudar pelos livros didáticos, pode-se testar seus conhecimentos conversando com uma IA sobre a matéria, assim como se conversa com um colega de classe. As ferramentas de IA são muito úteis quando estamos tentando lembrar de algo, mas a palavra, nome ou data nos fogem da memória. O mundo em que os estudantes não usavam IA morreu, mas o novo mundo ainda não nasceu completamente. O que digo para meus alunos é: "se a IA pode fazer seu trabalho, então logo você não será mais necessário; fazendo uso dela ou não, você precisa saber fazer algo que ela não sabe". O leitor pode imaginar o quão triste é constatar que o trabalho do estudante foi feito por uma IA e que está errado. O estudante usou uma IA sem autorização e, pior, não foi capaz de julgar que o que ela produziu não estava correto.

Achei bastante positiva a ação dos poderes legislativo e executivo brasileiros de impor restrições ao uso de celulares nas escolas. Qualquer professor minimamente atento sabe que o contexto que emergiu com o uso dos celulares nas escolas não foi um contexto onde a tecnologia é usada para o aprendizado, mas sim o contexto em que a tecnologia é usada para todo o tipo de distração. É triste pensar na quantidade de estudantes que aprenderam tão pouco dos conteúdos ensinados porque trocaram a atenção na aula pela atenção na conversa em aplicativos, em vídeos no TikTok ou memes de redes sociais. Mesmo na universidade (que não é contemplada pela nova legislação) observamos o estrago de aprendizagem causado pelo uso excessivo de smartphone durante as aulas. Estamos tentando fazer esse mundo voltar a ser como antes?

Tenho um colega que costuma se referir à "lei do menor esforço" nessas situações. Essa lei é descrita informalmente como uma tendência de organismos se comportarem de forma a gastar o mínimo de energia possível. Aplicando essa lei por dedução, as pessoas procuram o caminho mais fácil para atingir um objetivo. Essa lei é muitas vezes associada à preguiça; por exemplo, “se há um medicamento que me permite emagrecer, eu não vou gastar horas fazendo exercícios e me sacrificar controlando a minha dieta”. Não estou interessado nesse debate entre esforço e preguiça. O que considero relevante é pensar que, se as pessoas tiverem uma opção de ler menos, de usar IA, de usar o TikTok, por que elas não usariam? Elas farão uso desses recursos se eles significarem menor esforço para atingir os objetivos. Esse é o mundo novo. O mundo em que o caminho a ser seguido para se atingir objetivos mudou drasticamente em razão das novas tecnologias. Defender a leitura, as horas seguidas de estudo, o trabalho feito sem qualquer ajuda da IA e o banimento de sistemas como TikTok do ambiente de aprendizagem pode ser uma guerra perdida.

O mundo analógico conhecido por muitos de nós está quase morto. O novo ainda está surgindo. Ele ainda é imaturo. Não sabemos lidar com ele. Ele parece inconsistente e confuso quando analisado sob a perspectiva da estabilidade. Enquanto nasce, o mundo novo está moldando a mentalidade das pessoas. Nem mesmo conhecemos o suficiente tantas novidades, mas já temos uma sociedade moldada por elas. O que vem depois? Uma sociedade confusa, impactada por mudanças tecnológicas e culturais que são caóticas e desconhecidas. Tudo isso é o caldo que produz um ambiente social bastante confuso. Daí vem a vertigem e as dores que sentimos diante de várias situações em que pensamos: “não tem como isso dá certo”.

Penso, meu caro leitor, que várias ações são possíveis, mas, entre elas, a menos produtiva é defender a volta a um mundo que está morrendo. A resistência às mudanças pode ser inútil, mas a adoção sem discernimento também pode ser prejudicial. É necessário adaptar o quanto antes.

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