Leitura da história mascarada do negro brasileiro segundo Abdias Nascimento
Lesandro Ponciano
31 de julho de 2023
O estudo de como as sociedades se organizam e evoluem é revelador. Um fator que me interessa há muito tempo na dinâmica de organização e evolução social é a experiência de racismo, discriminação e segregação. Há alguns anos li dois livros reveladores sobre essas percepções, que são “Os negros na América Latina” do autor Gates Jr. Henry Louis e tradutor para Donaldson M. Garschagen (2014, Companhia das Letras) e “Racismo Estrutural” do autor Sílvio Luiz de Almeida (2020, Editora Jandaíra). O primeiro estuda o Brasil e mais 5 países da América Latina e analisa se e como as pessoas se denominam negras nesses países. O segundo analisa profundamente o conceito de racismo, das classificações de racismo cunhadas ao longo da história e da definição de “racismo estrutural”, como algo decorrente da estrutura social.
Um terceiro livro, que terminei de ler nos últimos dias, é “O Genocídio do Negro Brasileiro” do autor Abdias Nascimento (2016, 3 ed., Editora Perspectiva) - a primeira edição é de 1978. Esse livro estava na minha lista há vários anos. Comecei a leitura em 2022, mas a interrompi. Na época, li os prefácios, comecei a ler o longo prólogo (“A história de uma rejeição”). Estava desconexo do que eu esperava e, por isso, interrompi a leitura. Nas últimas semanas, eu estava revisando alguns artigos científicos que tratam de racismo, isso despertou meu interesse pelo tema no Brasil, então retornei essa leitura. Foi uma decisão acertada. A partir da Introdução (página 47), o autor inicia um mergulho sobre os desafios enfrentados pelo negro no Brasil, cobrindo diversas áreas como política, religião e cultura.
Inicialmente, o uso do termo “genocídio” me fez imaginar que se tratava principalmente do período da escravidão ou da situação contemporânea dos negros nas periferias das grandes cidades (notadamente, nas favelas) onde o abandono social e os confrontos com polícias originam estatísticas assustadoras. No entanto, o livro trata de algo bem mais essencial. O ponto central do livro é tentar desconstruir o mito da “democracia racial” e o conceito de “meta-raça” (ou “metarraça”), que preconizavam que no Brasil existia uma convivência harmônica, justa e pacífica entre todas as pessoas, independente de raça, e que o conceito de raça havia sido superado com a miscigenação. Esse debate ocorreu dentro do contexto histórico em que o livro foi escrito. Em 1976 (quando o livro foi escrito) assim como em 1978 (quando foi publicado), o Brasil vivia uma ditadura militar e o discurso oficial do governo nos fóruns internacionais era o da situação de “democracia racial”. A dimensão do livro se eleva nesse contexto. Ele estava confrontado a “versão oficial” de um governo autoritário.
O livro é um ensaio escrito por um negro, que tem consciência da história da sua raça e que sabia que estava se contrapondo a teorias bastante difundidas e propagandeadas. Talvez esse contexto desfavorável tenha contribuído para a solidez da argumentação apresentada. Aos poucos, o ensaio desmonta o conceito de “meta-raça” e o “mito do senhor benevolente”, que vigorou por muitos anos. Ele expõe a exploração sexual da mulher com aparência africana a partir de relatos históricos e literários. Fica exposta a fragilidade do argumento de “africano livre” no processo gradual que levou à abolição da escravatura e da chamada “liberdade” que veio após ela. A busca pelo “branqueamento” da raça e “branqueamento” cultural é o que livro coloca e detalhada como sendo uma estratégia de genocídio do negro brasileiro. Trata-se de um conjunto de estratégias políticas que visavam um processo de miscigenação, que levasse a uma progressiva redução da “mancha negra” na população brasileira e a extinção (ou folclorização ou bastardização) da cultura negra no país. Apesar de todos esses esforços em diversas frentes e ao longo de séculos, a raça e a cultura negra ainda sobrevivem no país.
Trata-se de um livro que precisa ser lido, inclusive uma das propostas do autor é promover o ensino de história afro-brasileira nas escolas. A narrativa lida em 2023 tem os mesmos significados que buscava ter em 1978, que é trazer à luz e reduzir o cerceamento e o emparedamento que a sociedade impõe à raça negra e à cultura negra. Por eu ser negro, admito que a leitura é em vários momentos desconfortável. Ela tira as máscaras de um racismo que esforçaram para esconder. A última vez que senti tal desconforto na leitura de um livro, foi quando li “Terceiro Reich em Guerra” de Richard J. Evans (2017, 3 ed., Editora Crítica). Esse, no entanto, trata de um genocídio explícito e concentrado em menos de uma década. Abdias Nascimento, de outro modo, trata de um genocídio continuado, ao longo de séculos, e que foi mascarado por conceitos como “democracia racial” e “meta-raça”.
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