A Ascensão da Ciência Cidadã: Reflexões sobre experiências, princípios e críticas
11 de janeiro de 2017
Ciência cidadã se baseia na ideia de que todas as pessoas podem participar da condução de pesquisas científicas. Qualquer pessoa pode participar do processo de produção do conhecimento, não apenas aquelas pessoas que são credenciadas formalmente como “cientistas”. Ciência cidadã propõe uma mudança de paradigma que eleva a ciência a um novo patamar, que é definido como a “ciência de todos, por todos e para todos”. Naturalmente, essa é uma visão idealista de um estado almejado. O que se tem atualmente são diversos relatos de experiências, alguns princípios básicos que têm emergido das experiências e algumas críticas que apontam para desafios que precisam ser superados. A seguir faço uma breve reflexão acerca desses três pontos.Experiências
Ciência cidadã não é uma abordagem nova. Ela está ganhando momento nos dias atuais em razão das tecnologias da informação e comunicação que agora estão disponíveis. Atualmente, existem diversas iniciativas de investigação científica que se identificam como ciência cidadã. Cabe aqui destacar apenas algumas iniciativas cujas experiências exemplificam diferentes abordagens e resultados que podem ser obtidos com ciência cidadã. Quatro iniciativas de grande relevância são:
- e-Bird. O projeto e-Bird foi iniciado em 2002. Ele tem ênfase na observação de aves. As pessoas que colaboram com esse projeto geralmente saem em excursões para observar as aves. Em um sistema provido pelo projeto e-Bird, as pessoas preenchem um checklist com dados de todas as aves vistas e ouvidas durante a excursão, informando quando, onde e como as observações foram feitas. O sistema mantém para as pessoas os registros de suas observações e permite que elas visualizem tais registros em mapas e gráficos interativos. A base de dados com as observações reportadas pelas pessoas permite que cientistas analisem a presença ou ausência de espécies de aves ao redor do mundo. O projeto tem possibilitado descobertas científicas em diversas áreas do conhecimento.
- iNaturalist. O projeto iNaturalist foi iniciado em 2008. Por meio de uma aplicação para smarthphone, as pessoas podem fotografar e fazer upload de fotos de organismos que elas observam no meio ambiente, tais como borboletas, abelhas, morcegos, serpentes e minhocas. Essas fotos são geralmente georreferenciadas e têm informação sobre quando foram feitas. Ao serem disponibilizadas no iNaturalist, especialistas ajudam a identificar os organismos que são retratados nas fotos. A base de dados composta pelas observações devidamente identificadas permite que cientistas estudem os ecossistemas em termos de onde e quando os organismos surgem.
- Zooniverse. É uma plataforma que hospeda diversos projetos de ciência cidadã. Entre eles o projeto Galaxy Zoo, que foi iniciado em julho de 2007 e cuja experiência deu origem à plataforma. No Zooniverse, cada cientista pode criar o seu projeto e pedir a colaboração das pessoas. Os projetos se concentram em diversas áreas do conhecimento, que incluem Biologia, Astronomia e Medicina. Para participarem, as pessoas acessam a página Web da plataforma, identificam o projeto no qual querem colaborar, e realizam as tarefas indicadas no projeto. As tarefas disponíveis nos projetos geralmente consistem na identificação, classificação e transcrição de conteúdos existentes em imagens. Com os resultados das tarefas realizadas pelas pessoas, cada projeto forma uma base de dados que permite a condução de pesquisas científicas na área de interesse do projeto. A plataforma mantém uma lista das contribuições científicas alcançadas pelos projetos nela hospedados.
- FoldIt. O projeto foi iniciado em 2008. Trata-se de um jogo projetado para analisar configurações de enovelamento de proteínas. O enovelamento é um processo no qual as proteínas são dobradas em formas tridimensionais pelas quais elas assumem uma função biológica. No projeto FoldIt, um modelo tridimensional de uma proteína é apresentado aos participantes. Eles podem interagir com o modelo dobrando a proteína usando uma série de ferramentas fornecidas. O jogo é autoexplicativo e não requer nenhum conhecimento específico. Ao analisar as dobras realizadas pelos participantes, cientistas podem entender melhor a função biológica das proteínas. Isso permite estudar formas de combater doenças, criar vacinas e encontrar novos biocombustíveis, entre outras implicações. Diversas contribuições científicas já foram possíveis no projeto, incluindo um artigo que contou com a autoria de 9 cientistas e a coautoria de 57.000 jogadores.
Nessas quatro iniciativas as pessoas participam desempenhando tarefas que fazem uso das suas capacidades cognitivas ou das suas capacidades de coletar dados no meio ambiente em que vivem. Entretanto, existem outras formas de participação em ciência cidadã, como a doação de ciclos ociosos de recursos computacionais. Além disso, essas iniciativas têm escala mundial e engajam uma multidão de milhares de pessoas em diferentes partes do planeta. Entretanto, alternativamente, também existem iniciativas de ciência cidadã que não visam uma escala mundial e que têm ênfase em problemas de comunidades locais. Esse é o caso das comunidades de agricultores experimentadores em Honduras e no nordeste do Brasil.
Diversos projetos de ciência cidadã têm surgido a partir dos relatos de sucesso dos primeiros projetos. À medida que surgem novos projetos, as comunidades de pessoas que praticam ciência cidadã têm se organizado para compartilhar experiências e defender interesses comuns. Exemplos dessas comunidades são as associações como a Associação de Ciência cidadã, a Associação Europeia de Ciência Cidadã e a Associação Australiana de Ciência Cidadã. Nessas associações, tem-se buscado uma sistematização de conceitos, princípios e valores sobre os quais se sustenta a prática de ciência cidadã.
Princípios
O primeiro passo para se entender os princípios que norteiam a ciência cidadã é se formalizar o que se entende por “ciência cidadã”. Pode-se definir ciência cidadã como a condução de uma investigação científica por meio da colaboração entre cientistas e cidadãos cientistas. Nessa definição, cientistas são aquelas pessoas que possuem credenciais de cientistas obtidas em uma universidade. Tais credenciais estão associadas ao conhecimento e à experiência em uma área de investigação científica. Cidadãos cientistas, por sua vez, é o termo usado para designar pessoas leigas que não têm formação formal em pesquisas científicas e que não têm a investigação científica como uma atividade profissional.
A forma como se dá a colaboração entre cientistas e cidadãos cientistas em um projeto de ciência cidadã depende muito do contexto do projeto. Uma das abordagens de colaboração se traduz na distribuição de tarefas entre cientistas e cidadão cientistas por critérios de aptidão. Uma investigação científica consiste de diversas tarefas que precisam ser realizadas para que uma questão de pesquisa seja respondida. Muitas dessas tarefas requerem conhecimentos específicos que apenas os cientistas possuem. Outras tarefas são de tal maneira simples e operacionais que qualquer pessoa pode realizá-las. Na divisão dessas tarefas por aptidão, os cidadãos cientistas realizam as tarefas mais simples, permitindo que os cientistas se dediquem às tarefas que requerem maior especialização.
Não é incomum que a quantidade de tarefas a serem executadas por cidadãos cientistas seja diversas vezes superior à quantidade de tarefas a serem executadas pelos cientistas. Daí o fato de existirem diversos projetos de ciência cidadã compostos por poucos cientistas e milhares de cidadãos cientistas. Um fator subjacente à colaboração entre eles é o incentivo dado aos cidadãos cientistas. Cidadãos dificilmente se engajarão em uma investigação científica se não forem incentivados. Em essência, o principal meio de incentivo deve ser a relevância da investigação. Ou seja, as pessoas devem perceber a investigação como algo relevante para que elas se disponham a participar.
Essa perspectiva pela qual os cidadãos cientistas ajudam cientistas a conduzirem uma investigação é informativa sobre a dinâmica de diversos projetos de ciência cidadã existentes atualmente. É natural que um cientista ao conduzir sua investigação sinta uma necessidade e peça a colaboração das pessoas. Entretanto, essa visão é muito restritiva sobre o que é ciência cidadã. Ela não comporta muitas outras percepções que são igualmente possíveis. Por exemplo, conceitualmente, os cidadãos cientistas também podem identificar problemas e pedir a colaboração dos cientistas para investigar tais problemas.
Um projeto de ciência cidadã surge em um contexto propício. Além de uma questão relevante a ser respondida, esse contexto inclui um conjunto de crenças das pessoas envolvidas na busca da resposta para a questão. Pode-se apontar que iniciativas de ciência cidadã surgem de pessoas que acreditam que:
- a participação de uma grande quantidade de pessoas torna possível a condução de pesquisas científicas que não poderiam ser conduzidas de outra forma;
- pessoas sem credenciais de cientista podem realizar com sucesso algumas atividades que são parte de uma investigação científica;
- ciência cidadã traz benefícios a todos os envolvidos, incluindo os cientistas e os cidadãos cientistas.
Tais crenças podem ser traduzidas em princípios que norteiem a criação e gerência de projetos de ciência cidadã. Uma das primeiras iniciativas em sistematizar esses princípios é da Associação Europeia de Ciência Cidadã. Essa associação estabelece 10 princípios da ciência cidadã, que são:
- Os projetos de ciência cidadã envolvem ativamente os cidadãos nas atividades científicas, o que gera novo conhecimento e compreensão.
- Os projetos de ciência cidadã produzem resultados científicos genuínos.
- Tanto os cientistas como os cidadãos cientistas se beneficiam da participação nos projetos de ciência cidadã.
- Os cidadãos cientistas podem, caso queiram, participar em várias etapas do processo científico.
- Os cidadãos cientistas recebem feedback dos projetos no quais participam.
- A ciência cidadã é considerada uma abordagem de investigação como qualquer outra, com limitações e enviesamentos que devem ser considerados e controlados.
- Dados e metadados resultantes de projetos de ciência cidadã são tornados públicos e, sempre que possível, eles são publicados em um formato de acesso livre.
- As contribuições dos cidadãos cientistas são reconhecidas publicamente nos resultados dos projetos e nas publicações.
- Os programas de ciência cidadã são avaliados pelos seus resultados científicos, qualidade dos dados, experiência para os participantes e abrangência dos impactos sociais e políticos.
- Os responsáveis por projetos de ciência cidadã têm em consideração questões legais e éticas relativas ao copyright, propriedade intelectual, acordos sobre compartilhamento de dados, confidencialidade, atribuição e impacto ambiental de qualquer atividade.
É subjacente a esses princípios que a participação das pessoas em ciência cidadã tenha efeitos que superem as fronteiras da investigação em si. Além do avanço da ciência, promover o avanço do conhecimento sobre a ciência também é objetivo da ciência cidadã. Há uma relação estreita entre ciência cidadã e a democratização da produção e acesso ao conhecimento. É um ideal que a participação das pessoas em iniciativas de ciência cidadã possibilite que elas se apropriem do conhecimento. Nessa linha de raciocino, pode-se argumentar sobre diversos outros impactos sociais, econômicos, ambientais e políticos decorrentes da participação das pessoas em iniciativas de ciência cidadã.
Críticas e desafios
Além do reconhecimento pelos resultados que têm sido obtidos, ciência cidadã também tem recebido críticas. As críticas são oriundas de diferentes segmentos da comunidade científica. Seguem três críticas que parecem especialmente importantes:
- Críticas à credibilidade das descobertas. O resultado de uma pesquisa científica conduzida como ciência cidadã pode estar comprometido em razão de problemas de acurácia de tarefas executadas pelos cientistas e pelos cidadãos cientistas. Problemas de acurácia introduzidos pelos cidadãos cientistas constituem uma preocupação que não existia nas abordagens convencionais de pesquisa científica. Tais problemas podem ser introduzidos de forma intencional, mas principalmente de forma não intencional. Isso é potencializado pela grande quantidade de cidadãos cientistas que atuam em cada projeto, não sendo trivial estabelecer um controle dos resultados das tarefas realizadas por cada um deles. Outro fator potencializador é o fato de que os cidadãos cientistas não são formalmente responsáveis pelos resultados finais da investigação, como são os cientistas. Há propostas de mecanismos de credibilidade e reputação para cidadãos cientistas, mas ainda são poucos os estudos nessa linha.
- Crítica à extensão da atuação dos cidadãos cientistas. As principais atividades dos cientistas consistem na proposta de teorias e na definição de métodos para testá-las. Em ciência cidadã, os cidadãos cientistas não têm exercido papel fundamental nessas atividades. Assim sendo, eles ficam marginalizados daquilo que é de fato entendido como a prática de ciência. Se o cidadão não participa em toda a extensão da investigação ou se sua participação se limita às atividades que não são as básicas do processo científico, parece excessivo caracterizá-lo como cientista. Nesse caso, também é estranho argumentar novidade na abordagem de pesquisa científica em relação às abordagens convencionais, pois muitas das abordagens convencionais em grande parte já se baseiam em voluntários e auxiliares executarem tarefas operacionais como forma de suporte ao trabalho dos cientistas.
- Crítica à duração do engajamento dos cidadãos cientistas. Embora os atuais projetos de ciência cidadã tenham se mostrado efetivos em recrutar multidões de cidadãos cientistas, a maioria dos recrutados exibe um engajamento não sustentável, manifestado pela curta duração da participação, que raramente é superior a um dia. Posto que a participação dos cidadãos é um pressuposto básico da ciência cidadã, esses resultados trazem questionamentos sobre em que medida os cidadãos realmente estão dispostos a participar de pesquisas científicas. Ciência cidadã e seus efeitos na sociedade perdem força se as pessoas não estiverem dispostas a se engajar.
Essas críticas apontam para limitações e desafios que precisam ser superados no modelo de ciência cidadã predominante atualmente. Críticas à credibilidade das descobertas precisam ser adequadamente consideradas em cada projeto e em cada resultado obtido por meio da ciência cidadã. Críticas à extensão da atuação dos cidadãos cientistas e à duração do engajamento dos cidadãos cientistas apontam para desafios que as comunidades de ciência cidadã precisam encontrar formas de entender e superar para que a ciência cidadã se consolide como uma abordagem de investigação científica.
Resumo dos argumentos
Ciência cidadã tem ganhado momento nos dias atuais. A tendência é que continue se expandindo e se aperfeiçoando enquanto abordagem de investigação científica. As experiências de sucesso e o surgimento de novos projetos têm levado à organização de comunidades de pessoas que praticam ou estudam ciência cidadã. Aos poucos, essas comunidades têm sistematizado princípios, valores e novos potenciais da ciência cidadã. Ainda existem diversas críticas a serem respondidas. As críticas apontam para limitações e desafios que precisam ser superados no modelo atual de ciência cidadã.
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